Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Acho seguro dizer que, no imaginário da maioria dos brasileiros, a culinária portuguesa se baseia quase que exclusivamente no bacalhau. E não me leve a mal, o país realmente adora o peixe seco (dizem que há uma receita diferente para cada dia do ano), mas uma coisa que aprendi quando vim morar aqui é que a carne do dia a dia dos tugas é o bom e velho porco – assado, grelhado, curado, o suíno é a pièce de resistance da mesa lusa.
Dentro desse espírito, o Hotel São Lourenço do Barrocal organizou, nesse último final de semana, um evento para celebrar todas as coisas suínas, apropriadamente intitulado Celebração do Porco Alentejano. Nada mais adequado: de todas as regiões do país, o Alentejo é provavelmente aquela na qual as tradições rurais são ainda mais presentes no dia a dia. A proposta do evento é recuperar um pouco dessa atividade comum à vida do campo: a matança do porco e seu aproveitamento em uma aparente infinidade de pratos e sub-produtos.
Em tempos em que conceitos como farm to table e head to tail são usados e abusados até quase perderem o sentido, nesse final de semana no Alentejo eles foram levados ao pé da letra. O Chef José Júlio Vintém nos mostrou como o porco pode ser aproveitado em sua quase totalidade, literalmente do focinho ao rabo, e como, recorrendo a receitas tradicionais da região, todas as partes do animal podem virar petiscos deliciosos.
Começamos o dia encarando o frio e o fog do inverno alentejano para encontrar o Chef em companhia de um porco já pendurado num gancho e pronto para o destrinche – para o alívio dos presentes de estômago mais fraco, o animal foi morto e estripado algures. Mesmo assim, tenho certeza que não foram poucos os que sentiram o café da manhã dando voltas na barriga, e ao final da pouco mais de uma hora que levou a atividade a platéia do Chef tinha se reduzido pela metade.
Os que aguentaram até o final tiveram uma verdadeira aula sobre anatomia suína, suas aplicações e sua ligações com a cultura local. Aliás, o próprio local onde a aula se deu era cheio de história: o hotel usa as mesmas instalações de uma vila rural alentejana tradicional, e a sala onde estávamos era justamente utilizada para o abate e defumação dos animais pela comunidade que ali vivia.
Aprendemos, por exemplo, quais os melhores cortes para grelhar (a pluma e os secretos, parte do pescoço do porco), como reconhecer um porco saudável pela aparência do seu fígado (o nosso passou no teste com louvor) e qual a diferença do presunto português pro espanhol (por aqui se mantém a pele da perna e a peça fica 3 dias no sal, enquanto do outro lado da fronteira a pele é retirada e a peça fica no sal apenas um dia). Ah sim, aprendemos também qual a parte favorita do Chef, e aposto que ninguém acertaria um chute: não é o pernil nem a barriga, mas sim o singelo focinho!
Algumas pessoas podem ficar chocadas com essa faceta mais crua, por assim dizer, da experiência, mas além da tradição histórica, a verdade é que se vamos valorizar a carne que consumimos no dia a dia, pelo menos enquanto as promessas de carne criada em laboratório não se concretizem, precisamos entender que por trás de cada bife ou hambúrguer houve um animal que sangrou e morreu para que pudéssemos nos deliciar.
Voltamos a nos reunir no início da tarde ao redor de uma grande fogueira, ainda com bastante fog, para degustar alguns dos ótimos vinhos de produção local do hotel e assistir a uma breve apresentação de canto alentejano, uma tradição da região e que é Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
E com os corações já aquecidos pelo fogo e pelo álcool, finalmente chegamos ao prato principal do evento (pun intended!). Banquete não é uma palavra que uso de maneira displicente para me referir a refeição que nos foi oferecida – um verdadeiro tour de force gastronômico, exigindo dos presentes a disposição de um atleta olímpico.
O menu, que incluiu o animal que vimos ser destrinchado mais cedo, trazia, entre outros pratos: presunto cru e outros embutidos artesanais (o presunto feito pelo hotel é realmente espetacular), pezinhos de coentrada (espécie de sopa bem grossa, quase uma papa, feita com os pés do porco e temperada com muito coentro), cabeça de xara (terrine de cabeça de porco, uma versão lusa do fromage de tête francês), banha temperada com ervas, pra se passar no pão como se fosse manteiga, bochecha de porco assada no forno a lenha e orelha e focinhos grelhados (adoro as orelhas, que tem uma textura muito interessante, mas contrariando o Chef não apreciei tanto o focinho) – além de cortes mais familiares aos brasileiros como lombo assado no forno e costelinhas fritas.
Para acompanhar, uma variedade de pães, migas (espécie de purê de pão muito comum no alentejo), vegetais grelhados e purês de aipo e marmelo (sim, a mesma fruta que dá origem a marmelada faz um purê aromático e ligeiramente ácido). Tudo delicioso e de produção local – o hotel tem uma horta onde é produzida boa parte dos legumes e vegetais consumidos no restaurante – lembram da do farm to table levado a sério? Pois é! (Eles produzem ainda azeite nas instalações, além dos vinhos.)
Os sobreviventes puderam ainda experimentar alguns doces típicos – boa parte dos quais, dentro do espírito do evento, foram confeccionados com banha suína. Não sou muito dos doces mas o toucinho do céu que experimentei, a base de amêndoas e banha, estava fantástico. Um belo (e gordo) fechamento para um excelente dia.
Paraense radicado em Lisboa. Engenheiro, cozinheiro e cervejeiro, sem ordem específica de preferência. Viajante de vocação.
Ver todos os postsparabéns, pelo post muito bem elaborado. Portugal é um pais fantástico em todos os sentidos. Abraços
Que bom que gostou do post Alexandre. A terrinha é mesmo incrível, um país tão pequeno mas que em cada canto esconde uma surpresa. Abraço.
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.