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Quem já fez uma visita a uma vinícola moderna sabe que hoje em dia os processos são altamente padronizados: o mosto de uva é acondicionado em enormes fermentadores de inox, onde castas específicas de leveduras são adicionadas. Depois de fermentado, o vinho normalmente estagia em barris de carvalho antes de ser engarrafado. Assim também é feito com quase todo o vinho produzido em Portugal. Entretanto, em algumas localidades do Alentejo, pequenos produtores estão redescobrindo uma técnica milenar, de vinhos fermentados naturalmente em enormes ânforas de barro – as talhas.
Essa técnica teria sido introduzida na Península Ibérica pelos romanos, e era dessa maneira que se fazia vinho na antiguidade: após a vindima, o suco das uvas é colocado nas enormes talhas (os volumes variam de 200 a 1500 litros) junto com parte do bagaço e deixados a fermentar – os frutos possuem uma levedura natural. O único cuidado especial é em molhar as talhas na primeira semana, auge da fermentação, para diminuir um pouco a temperatura, que se elevada demais pode até trincar o barro. De resto, é esperar a natureza fazer seu papel. Após a atividade microbiótica cessar, o vinho é transferido pra outras talhas, já sem o bagaço, e deixado descansar durante um período de até 12 meses. Produz-se vinho de talha tanto tinto quanto branco.
O contato com o barro traz uma característica bem peculiar pra bebida. A referência mais fácil pros brasileiros é com a água armazenada em filtro de barro: há uma mineralidade mas também um grande frescor, se traduzindo num vinho com características bem distintas. Como o barro é poroso, e a bebida está sempre em contato com o ar, é um vinho extremamento oxidado. E, claro, não há nenhum sinal dos aromas e sabores normalmente associados à madeira.
O Alentejo não é o único lugar que produz vinho por esse método, diga-se de passagem. Na Geórgia, nos Cáucasos, terra onde se descobriu os mais antigos vestígios de viticultura no mundo, com mais de 8000 anos, ainda se produz vinho em talhas de barro enterradas no solo.
Ok, você ficou curioso e decidiu experimentar o vinho de talha na sua próxima viagem à terrinha. Onde encontrá-lo? Infelizmente a missão não é fácil. A produção de vinho de talha ainda é bem pequena (alguns poucos milhares de garrafas anualmente, embora esteja aumentando) e mesmo em Lisboa é difícil botar as mãos em uma garrafa. As vezes aparece alguma coisa nos grandes supermercados ou lojas especializadas, mas sua melhor aposta ainda é ir direto a fonte, no Alentejo.
Um dos destinos mais certeiros é a Adega José de Souza, em Reguengos de Monsaraz, já quase na fronteira com a Espanha, que possui 114 ânforas e recebe visitantes para enoturismo. Outras operações interessantes são a da Casa Relvas, da Cortes de Cima e até da gigante Esporão. Mas o centro do movimento está mesmo ao redor da minúscula Vila de Frades (que ganhou o título de Capital do Vinho de Talha) e as vizinhas Vila Alva, Cuba e Vidigueira. Nessa região, mais de 180 pequenos produtores se dedicam ao vinho de talha, ainda que a produção da maioria seja bem pequena.
Outros produtores estão aos poucos acrescentando vinhos de talha ao seu repertório, mas tem esbarrado numa dificuldade: conseguir as próprias talhas. É que, como durante muito tempo o interesse no produto foi escaso, os pequenos fabricantes de talhas foram fechando com o decorrer dos anos e hoje são pouquíssimos que ainda dominam a antiga técnica, totalmente artesanal. Enquanto uma nova geração de (talheiros? talhadores?) não se forma pra regularizar a produção, já surgiu até um ativo mercado de talhas de segunda mão, às vezes esquecidas em antigas herdades ou usada como decoração em restaurantes e bares e que agora estão sendo caçadas por viticultores ávidos por se lançar nesse mercado promissor.
Paraense radicado em Lisboa. Engenheiro, cozinheiro e cervejeiro, sem ordem específica de preferência. Viajante de vocação.
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