Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Kiev, a capital da Ucrânia, abre alas para o turismo movido pelas festas de música eletrônica. Para amantes do techno, o destino é puro deleite e mais barato que as capitais da Europa Ocidental.
Era uma quinta-feira à tarde e as pessoas começavam a se amontoar em torno do portão de embarque para o voo W6 6114, no Terminal 2, do aeroporto de Berlim. Público na maioria jovem, vestido todo de preto, tênis de solado alto “chunky” ou um par de botas Dr. Martens nos pés, a franja cortada impecavelmente reta acima do meio da testa ou com qualquer outro corte de cabelo muito moderno. A moda saída das filas do Berghain tomava conta do portão.
Eu era uma das poucas pessoas coloridas com meu moletom bege e uma calça azul marinho, mas o burburinho deixava claro que estávamos todos indo para Kiev, na Ucrânia, em busca da mesma coisa: festa. No nosso caso, o ∄, que na matemática é o símbolo para identificar algo que “não existe”, mas que na capital ucraniana representa o mais novo e querido club underground de música eletrônica do mundo, que completa 2 anos neste mês.
Voo lotado encerrando meu longo mês de espera por este momento. Comigo vinha um frio na barriga, afinal seria a minha primeira viagem desde 2019 para um lugar que eu não conheço com pessoas com quem eu nunca tinha viajado antes e, também, a minha primeira festa em um club fechado desde o início da pandemia.
Eu ouvi falar sobre o misterioso club sem nome no ano passado, quando a minha amiga Raquel levou o seu projeto berlinense Pornceptual para lá no início de março, uma semana antes da OMS declarar a pandemia mundial. Ela voltou empolgada demais com o club afirmando ter sido o melhor que ela já tinha ido na vida.
Em agosto deste ano, quando as fronteiras e as pistas reabriram, a Raquel retornou à Kiev para levar novamente a sua festa para um público de 1.600 pessoas. Diferentemente de 2020, era verão, as pessoas estavam bem animadas com a retomada da vida normal e a capital ucraniana estava muito mais viva, vibrante e empacotada de turistas. Nesta segunda vez, ela voltou apaixonada também pela cidade e com o queixo caído com uma tal pista chamada “Backyard” que o club ∄ só abre durante o verão. Contou-me que nunca tinha visto nada igual. Tentou explicar como era, mas sem sucesso.
Não precisou muito para convencer a minha alma clubber a querer ir com ela para lá, pois as minhas pesquisas mostravam que Kiev tem uma noite de muita festa e pode nos proporcionar uma das melhores noitadas da nossa vida. Pode soar exagerado quando você pensa em Berlim, São Paulo, Londres ou Nova York? Até pode, mas já tendo frequentado todas elas, eu posso afirmar: a noite de Kiev é realmente muito especial e única. Kiev é exatamente o que ∄ traduziu muito bem no site e na revista desta temporada: uma zona de estímulos criada pelo coletivo crosslucid.
Na cidade, ele é conhecido com o club da rua Kyrylivska, 41 (ou apenas K41). O ∄ não tem presença nas redes sociais, não tem sinalização na porta, fica distante da mídia e regularmente lança um novo site numa nova url e publica uma revista impressa feitos por coletivos artísticos convidados. Pode parecer uma estratégia arriscada, mas tem funcionado muito bem, provavelmente por dar uma aura de lugar secreto e exclusivo.
Quando fui à exposição “No Photos on the Dance Floor”, que contava a história da cena da música eletrônica em Berlim a partir da queda do muro em 1989, eu fiquei muito tocada sobre um ponto específico: o entendimento de que as raves ilegais, que surgiram logo que o muro caiu, foram cruciais para unificar uma nação antes dividida.
Uma festa pode ser um ato político e muitas delas o são. Em sociedades opressivas, a pista de dança pode ser um dos poucos espaços para um sopro de liberdade. A música e a catarse coletiva causada numa festa são capazes de nos dar uma sensação de segurança e de libertação para ser quem somos (ou queremos ser). Nos soltamos e sentimos essa misteriosa comunhão com todos os estranhos à nossa volta. Não é raro, após uma boa festa, voltarmos pra casa com nossa alma renovada, muitas vezes sem ter conversando com ninguém.
Após a revolução de 2014 na Ucrânia, vários clubs tiveram suas portas fechadas. Não demorou para florescer uma cena underground da música eletrônica com raves ilegais. Em 2016 esta cena já chamava atenção do mundo e desde então não parou de crescer com o surgimento de novos coletivos locais, festas, festivais e clubs.
O ∄ abriu suas portas em novembro de 2019 com um projeto audacioso. Para colocá-lo em pé, contrataram o escritório de arquitetura Studio Karhard, o mesmo por trás do Berghain, para dar vida a uma antiga cervejaria com mais de 150 anos instalada numa área industrial decadente num bairro chamado Podil.
Chegamos às 3h da manhã do domingo. Não havia fila, mas para entrar era necessário fazer um teste rápido de COVID. Antes, porém, passamos pelo crivo do bouncer que aprovou nossa entrada dando uma pulseira para irmos testar. Já esta fila era grande e morosa, o que nos consumiu cerca de 45 minutos entre fazer o teste e esperar pelo resultado.
Nada na entrada sinaliza que ali funciona um club além das grades na frente da porta colocadas para organizar as filas. De um lado, a entrada de convidados. Do outro, do público geral.
Na entrada, a revista foi bem minuciosa, mas o segurança foi bem simpático puxando papo para saber de onde eu era. As câmeras do celular foram devidamente lacradas por adesivos e então entrei. Carimbão dado no antebraço garantindo a reentrada na festa, casaco deixado na chapelaria, onde não é cobrado nada para largar os pertences, espiada no merchandising à venda e pista.
As pessoas eram bem jovens e muito, mas muito, estilosas, muitas delas seminuas trajadas em roupas de couro e/ou látex e algumas, que eu não entendi muito bem, fantasiadas. Tinha o Zorro, a fada e uma borboleta. Muitas mulheres lindas que pareciam ter saído de editoriais de moda.
A área interna deixa claro que o investimento não foi pequeno, mas ninguém sabe quem está por trás do club. Vestígios da antiga cervejaria são vistos nos enormes buracos redondos no teto onde antes ficavam as chaleiras de mosto. A escada para a pista (a que estava aberta nesta noite) é circular, estreita e engaiolada. As pessoas sobem e descem ela se encarando. Em cima há um lounge com balanços de metal presos por correntes e pufs gigantescos espalhados. Tudo ocupado. Muitos corredores, uma pequena área de descanso com instalações do artista alemão Yanik Balzer servindo como poltronas.
O banheiro é gigante, com muitas cabines e pias redondas de metal com água filtrada. Uma coisa é clara: o projeto foi feito para agradar o público. Eu já estava apaixonada pelo lugar.
Apesar do Berghain aparentemente ter sido uma inspiração inicial para o ∄, eles têm uma identidade muito própria que nada tem a ver com o primeiro.
A pista estava cheia e esfumaçada. A qualidade do soundsystem beira a perfeição como poucas vezes vemos. Mas eu estava exausta e não durei muito. Às 13h30 do domingo eu era acordada com a notícia de que o tal ”backyard”, onde funciona uma pista aberta somente no verão, iria abrir por poucas horas. Ainda cambaleando após um brunch, eu estava novamente na fila de entrada validando meu teste Covid.
O sol estava alto e o céu de um azul cobalto estava limpíssimo. Fizemos todo o trâmite novamente, mas desta vez com o club esvaziado e o banheiro com uma nova saída já próxima à área aberta.
Quando entramos, o local não estava muito cheio, mas animado. Serge Jazzmate, um dos djs residentes, tocava um set de house cheio de groove tão feliz quanto o dia estava. O lugar é realmente difícil de explicar. A pista fica no meio de uma escadaria diferentona toda de concreto em que pequenas paredes separam os degraus maiores, que formam pequenas pistas. O público fica em torno do DJ como numa arena. Entendeu? Não? Então tem que ir pra lá. No último degrau há algumas cabaninhas com sofá para ficar a dois e uma ducha (?). O lugar é incrível e diferente de tudo que já vi. A qualidade do sistema de som era também impecável. Reconheci diversos rostos da noite anterior, incluindo o Zorro que dançava em cima de uma caixa.
Ouvi outros idiomas além do russo e ucraniano (que eu não sei distinguir) e, pela primeira vez desde que chegamos em Kiev, ouvi português de um casal de amigos que voou de Londres só para a festa. Conversei com uma novaiorquina a passeio pela Europa que também foi levada à capital ucraniana por conta da cena de música eletrônica.
Eu estava maravilhada e emocionada com tudo. Em dançar sem máscara, conversar com desconhecidos, ouvir house que eu gosto e estar cercada de amigos. Foi uma tarde especial, a mais emocionante que tive desde que a vidinha livre começou a voltar ao normal. Chorei de alegria e dancei até fecharem a pista por volta das 20h.
Esticamos depois na pista interna com o Fantastic Man comandando a noite. O club não encheu tanto quanto na noite anterior, mas o público era um pouco mais velho e mais interessante. Por volta da meia-noite eu recolhia meus caquinhos felizes para voltar para o hotel e encerrar meu primeiro de muitos finais de semana que eu espero passar em Kiev, pois a lista de lugares e festas para conhecer voltou maior.
Inauguração em novembro de 2019 com itbegins.today.
Início de 2020 ainda na pré-pandemia: lookingfor.vision.
Já quando a pandemia estava no auge: ucertain.events.
Reabertura do club em 2021: stimulation.zone.
CXEMA: considerada a melhor festa underground de Kiev lançada em 2014 em meio à militarização da Ucrânia. Sempre ocupando espaços pós industriais, a festa chega a reunir 2 mil pessoas por edição, além de ocupar clubs ao redor do mundo. Um deles foi o Berghain.
Closer: Um dos principais clubs do leste europeu apresentando sempre line-up impecável
Brave! Factory: Festival de música eletrônica que tem por trás do time do club Closer. A próxima edição rola dia 22.08.22.
ICKPA: Festival de música eletrônica que tem por trás a galera do Bassiani, club emblemático em Tblisi, na Geórgia.
Ostrov: Festival de techno de dois dias acontecendo sempre no começo do verão.
Para conhecer melhor a cena de música eletrônica de Kiev é só se sintonizar na 20ft Radio e acompanhar o Tight Media, plataforma criada por três mulheres.
Na próxima semana publicaremos o guia para curtir a cidade. Aí prepare-se para querer fazer as malas no próximo verão.
Lalai prometeu aos 15 anos que aos 40 faria sua sonhada viagem à Europa. Aos 24 conseguiu adiantar tal sonho em 16 anos. Desde então pisou 33 vezes em Paris e não pára de contar. Não é uma exímia planejadora de viagens. Gosta mesmo é de anotar o que é imperdível, a partir daí, prefere se perder nas ruas por onde passa e tirar dicas de locais. Hoje coleciona boas histórias, perrengues e cotonetes.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.