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Se você gosta de estudar sobre as cidades e pesquisa sobre o urbanismo, a chance de você nunca ter escutado falar de Jane Jacobs é praticamente zero. Livros, revistas, jornais, documentários, sites, podcasts, qualquer mídia que fala sobre o assunto, fala dela. Mas considerando que ela nem sequer urbanista era, e que seu livro mais importante, ‘Morte e Vida nas Grandes Cidades’, é de 1961, como é possível que ela seja tão influente no mundo todo até hoje? Então para você não fazer mais cara de paisagem quando ouvir seu nome, eu te entrego agora o seu legado mastigado para você voltar a participar da conversa… e – por que não? – falar com mais propriedade sobre as cidades.
Jane Jacobs nasceu em 1916 numa pequena cidade da Pensilvânia, e se mudou para Nova York com a irmã em 1935, durante a Grande Depressão. Depois de formar-se em ciências políticas e economia na Universidade de Columbia, ela começou a escrever para vários veículos, e foi com uma matéria da revista Iron Age, sobre o enfraquecimento econômico da sua Scranton natal, que ela percebeu o poder de sua voz. A repercussão do seu texto levou à implantação de uma fábrica de aviões na cidade, e deu o pontapé para o ativismo incansável de Jacobs.
Vivendo em Nova York boa parte da sua vida, lá ela se casou com o arquiteto Robert Hyde Jacobs Jr, e talvez tenha vindo daí o interesse dela por matérias relacionadas ao urbanismo. A questão é que o casal viveu por muitos anos em Greenwich Village, e depois no Brooklin, dois bairros famosos pela grande qualidade de vida, ao mesmo tempo em que assistiam ao avanço frenético do pensamento modernista do urbanismo. Vamos voltar um pouco no tempo agora, para entender o que isso quer dizer.
O modernismo na arquitetura é um movimento iniciado na segunda metade do século 19, que foi totalmente influenciado pela Revolução Industrial, pela tecnologia, pelo crescimento das cidades e pelo pensamento racionalista. A arquitetura da época se distanciava da tradição, do estilismo e do construir artesanal, e buscava formas de construir em larga escala. Não sem razão, o maior expoente do modernismo é o arquiteto suíço Le Corbusier. E foi o próprio um dos precursores do urbanismo modernista, que Jacobs viria a confrontar em seus escritos.
O planejamento urbano modernista considerava o homem como uma máquina, desempenhado funções objetivas, que poderia ser traduzidas em projeto. Le Corbusier, megalomaníaco que era, desenvolveu longos tratados de urbanismo, marcados por construções de escala gigantesca, circulação exclusiva por autoestradas largas, e vastas áreas verdes sem funcionalidade. Suas ideias, surgidas por volta dos anos 20, ecoaram por décadas, chegando em seu ápice com a construção de Brasília em 1960, justamente o momento em que Jacobs escreve seu livro que viria a se tornar a bíblia do urbanismo do fim do século 20 (e assim continua em pleno 2020).
O avanço do modernismo nas cidades americanas se dava por meio de grandes conjuntos habitacionais em terrenos enormes e subutilizados, política de tábula rasa em bairros históricos, e o surgimento dos subúrbios desconectados da vida urbana. Jane Jacobs, uma novaiorquina convicta, via o avanço do modernismo crescer junto com a decadência da cidade que ela reconhecia como sua. Ela também encontrou seu maior antagonista na figura de Robert Moses, engenheiro que dominou várias secretarias de desenvolvimento urbano de Nova York por décadas, e grande implementador dos conceitos modernistas na cidade. (Fun fact: quem assiste ‘Marvellous Mrs. Maisel’ pode ver uma cena na primeira temporada em que Jacobs aparece fazendo um comício em praça pública contra as reformas propostas por Moses nos anos 50).
Foi nesse cenário que se desenvolveu o livro ‘Morte e Vida…’ Observando a degradação, a sujeira e a violência crescentes em bairros recém-construídos, e comparando-os com os bairros tradicionais, com suas lojas locais, habitação e comércio convivendo em harmonia, e principalmente a vida nas ruas que essa heterogenia proporcionava, Jane Jacobs se tornou uma das maiores urbanistas da história. Ela não precisou de estudos, anos de experiência na carreira, nem nada. Ela apenas viveu na cidade.
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Se você sabe o mínimo sobre o que Jane Jacobs escreveu sobre urbanismo em seu livro célebre, você já deve ter ouvido sobre os ‘olhos na rua’. Essa pequena expressão é uma fração do conjunto de ideias que ela traz para compor a sua cidade ‘ideal’. O conceito dos olhos na rua podem ser extrapolados para uma ideia mais abrangente que ela aborda já no começo do livro, que é o do ‘balé das ruas’.
Tudo que Jacobs escreveu sobre as cidades se origina nas suas próprias observações, em seu próprio bairro, e o ponto de partida está justamente nessa visão bastante poética da vida urbana. A mulher sai com o bebê no carrinho e cruza com o senhor que lê o jornal no banco em frente à barbearia. Um grupo de jovens com mochilas passa fazendo barulho, e um vendedor de balas tenta chamar a atenção deles. Uma velhinha tropeça e por pouco não é atropelada pelo entregador de bicicleta de desvia na última hora. E assim gente de idades, classes sociais e culturas interagem em instantes que vão se sobrepondo infinitamente e construindo esse balé urbano. A cidade vibra com vida, dia após dia. Essa é a cidade que ela quer.
Mas essa cidade se opõe diametralmente à cidade que vinha sendo construída nos planos urbanos de Robert Moses. Grandes conjuntos habitacionais, isolados, cheios de muros, ligados entre si por grandes avenidas cheias de carros e vazias de gente. Bairros comerciais abarrotados durante o dia e desertos à noite. A vida fica restrita ao espaço privado, e a cidade morre. (Lembra algum lugar aí da sua cidade???)
Para Jacobs, a única fórmula para nutrir a vida nas ruas era a diversidade: de usos, de escalas, de edifícios, de classes e de pessoas. Só essa mistura heterogênea garante que a rua seja interessante o suficiente para enchê-la. O estar na rua é parte importantíssima da experiência urbana. Gente na rua faz o comércio florescer, o espaço público ser bem cuidado, e deixa a cidade mais segura. Os olhos na rua nada mais são do que os olhos dos zeladores circunstanciais que todos nós nos tornamos ao circular por aí. Uma rua cheia de gente tem dezenas, centenas, milhares de olhos cuidando dela.
Hoje, analisando de forma objetiva, os exemplos dados por Jacobs no livro já adquiriram um tom quase nostálgico da vida urbana, onde as calçadas são compartilhadas por alfaiates, lojas de doces e açougueiros napolitanos. Bem a cara dos anos 60, num mundo pré-globalização e internet. Mas o fundamento de suas ideias continuam fortes. Mesmo aqui no Brasil, grandes cidades lutam para frear a transformação de bairros vivos em grandes paliteiros de prédios estéreis, com suas guaritas e muro altos, e suas ruas entupidas de carros engarrafados.
A evolução das cidades nos 60 anos seguintes ainda trouxeram diversos problemas que ela sequer poderia imaginar, como a desigualdade social, as questões de sustentabilidade e a gentrificação. Porém, ali, naquele simples livro que mais parecia um grande ensaio pessoal sobre o assunto, Jane Jacobs abriu um caminho de pensamento que nortearia todo o urbanismo contemporâneo: a ideia de que projetar uma cidade tem que partir da menor escala, da pessoa, para o todo. Brasília está aí para mostrar que os grandes planos urbanísticos modernistas estavam fadados a falhar miseravelmente.
Para o Renato, em qualquer boa viagem você tem que escolher bem as companhias e os mapas. Excelente arrumador de malas, ele vira um halterofilista na volta de todas as suas viagens, pois acha sempre cabe mais algum souvenir. Gosta de guardar como lembrança de cada lugar vídeos, coisas para pendurar nas paredes e histórias de perrengues. Em situações de estresse, sua recomendação é sempre tomar uma cerveja antes de tomar uma decisão importante. Afinal, nada melhor que um bom bar para conhecer a cultura de um lugar.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.