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Primavera Sound 2019: o “novo normal” é feminino

Quem escreveu

Amanda Foschini

Data

06 de June, 2019

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A primeira grande mulher que vi no Primavera Sound deste ano foi a Nurya. Ela não é artista mas me deu as boas-vindas já na primeira noite, quando nos conhecemos a caminho do show da Erykah Badu. Nurya é negra e lésbica, mora em São Paulo, mas estava em Barcelona para o festival e logo seguiria para Berlim, onde conheceria a família da namorada alemã.

O já famoso letreiro de boas-vindas ganhou um irmão gêmeo no mar. Foto: Paco Amate
O já famoso letreiro de boas-vindas ganhou um irmão gêmeo no mar. Foto: Paco Amate

Entre goles de cerveja e as músicas de um show emocional carregado pelo poder da black music cheia de alma da Erykah, Nurya me contou como se descobriu negra (ela vem da classe média, estudou em colégios particulares onde era a única negra e não entendia o racismo como tal), como foi ser gorda (ela chegou a pesar 107kg) e como se assumiu lésbica (ela esperou o dia em que saiu de casa e alcançou a independência financeira para sair do armário para a mãe).

Nurya é a personificação do espírito desta edição do Primavera Sound que reinventou a normalidade -sem gêneros, classes ou preconceitos- e celebrou o feminino e a diversidade. Ao alcançar a tão debatida paridade de gêneros no line up, o festival catalão empurrou a discussão na direção dos fatos: sim, é possível fazer um festival com 50% de artistas mulheres e, quando o jogo é de igual para igual, elas brilham e fincam sua bandeira onde antes reinavam os mesmos deuses brancos e héteros de sempre.

Não sou eu quem diz. Basta ler algumas resenhas do festival em veículos internacionais para entender que não há volta. O domínio feminino é incalável, imparável e inegável.

Miley Cyrus prova que sua mais recente reinvenção é sua melhor até agora em seu triunfante show no Primavera Sound (NME)

A grande show-woman: Janelle Monae unifica as massas no Primavera Sound (NME)

Julia Holter, Janelle Monae … as mulheres tomam o Primavera Sound (El País)

Primavera Sound: Courtney Barnett e Christine & The Queens estupendas no festival das mulheres (El Mundo)

Já na entrada do Parc del Fòrum em Barcelona, a organização reforçou a intenção desta edição criando um stand informativo “Nobody is Normal” (Ninguém é Normal), onde uma equipe do festival estava preparada para tirar dúvidas e receber denúncias de qualquer caso de violência ou discriminação de gênero. Equipes itinerantes e uniformizadas também circulavam por toda a área do evento para detectar possíveis problemas e, nos telões dos grandes palcos, artes informativas explicavam que sexo só é legal com consentimento e que ninguém deveria se calar diante de uma agressão.

Stand informativo da ação "Nobody is Normal" / Foto: Christian Bertrand
Stand informativo da ação “Nobody is Normal” / Foto: Christian Bertrand

A diversidade do lineup se refletiu também no público e causou tremelique nos puristas “o Primavera era um festival indie”: entre os mais de 220 mil atendentes vindos de mais de 145 países, havia brancos, pretos, amarelos, asiáticos, altos, baixos, gordos, magros, gente de preto, gente fantasiada de dinossauro, mulheres de adesivo tapa-teta, homens de collant. Gente jovem para ver Miley Cyrus, gente velha (eu) fazendo corinho quando Neneh Cherry cantou “seven seconds away, just as long as I stay, I’ll be waitiiiiiiing”. Pessoas e o poder agregador e transformador da música. Os únicos dois ingredientes insubstituíveis em um festival. As únicas duas coisas que não têm remédio nem remendo. O resto é ladainha de quem não consegue conviver com o diferente ali ao lado.

As rotas eram inúmeras em um festival que contém mil festivais dentro si mas sempre incluíam mulheres incríveis: Solange, Courtney Barnet, Nina Kraviz, Julia Holter, Sigrid, Octo Octa. A peregrinação começou já na quarta-feira, às 2h da matina, com nossa Linn da Quebrada comandando uma jogação séria sob as luzes da Sala Apolo. No primeiro dia no recinto oficial do Primavera Sound, Christine & The Queens – a nova cara do pop – encantou com seu baile michael jacksoniano e apresentou sua nova colaboração com Charlie XCX, enquanto Erykah Badu amaciava todo mundo em um show que, mesmo com suas limitações, emocionou quem nunca havia visto a artista. Jayda G e Yaeji botaram fogo no povo e FKA Twigs apresentou sua obra-prima com bailarinos e espadas diante de um palco Ray-Ban lotado e embasbacado. A gente gostaria de ter durado mais mas preferiu guardar bateria para os outros dias que ainda viriam.

Foto: Sergio Albert
Foto: Sergio Albert

A sexta-feira começou com o melhor show desta edição, segundo a pesquisa feita por esta jornalista e os amigos que estavam por lá. Janelle Monáe e sua banda feminina fizeram o show mais divertido, dançante e sexy desta edição. Seu groove nos fez lembrar de Prince e suas reivindicações recordaram que música também é protesto. Mulher, negra e gay, Janelle se montou como divindade afro, vestiu uma calça em formato de xereca para cantar a liberdade feminina e celebrou o poder da estranheza de cada um de nós convidando algumas pessoas para subirem ao palco com ela mostrarem seu juice ao mundo. Como se não fosse suficiente, ela sequestrou todo mundo com seu vozeirão e se jogou na plateia, nadando entre seus “dirty computers”. Um show para relembrar a grandiosidade da música negra e um festão para a memória.

Showzaço de Janelle para guardar na memória / Foto: Divulgação
Showzaço de Janelle para guardar na memória / Foto: Divulgação

De um lado ao outro do espectro musical, seguimos para o show de Kate Tempest, que nos levou a um novo lugar. A aparente monotonia de suas produções foi esmagada pelo poder de suas palavras e Kate foi uma espécie de pastora rapper fazendo música e poesia transarem com amor. Depois, foi o tempo da pausa para a bebida (neste ano, os copos de plástico custavam 1 eurinho e vinham com o lineup de alguma das 19 edições do festival, o que deu uma bela reduzida no mar de lixo de outros anos), para o conversê com os amigos que encontramos por acaso (que felicidade é encontrar sem combinar, não?) e seguir para a Peggy Gou para colocar o último prego no caixão.

Chorando lágrimas de sangue e abandonada por todos os amigos, segui sozinha para o último dia e para o show mais aguardado desta edição: Rosalía e seu neoflamenco. A diva espanhola conquistou ares de realeza e era o único assunto em bares, banheiros e rodas de amigos. Eu já havia visto seu show no ano passado mas queria entender o que mudou de lá para cá e como o público internacional receberia a cantora. Vai soar exagerado mas Rosalía e seu trá trá engoliram o Primavera Sound, deixando o só o caroço para o resto. Seu show foi o mais assistido da história do festival com 63 mil sardinhas tentando mexer alguma parte do corpo e vibrando a cada nota alcançada. Em alguns momentos, me diverti mais com o encantamento do público (muitas crianças e algumas meninas fantasiadas com o look do clipe de “malamente”) do que com o show em si.

Reina Rosalía fazendo todo mundo se espremer para o seu trá trá / Foto: Divulgação
Reina Rosalía fazendo todo mundo se espremer para o seu trá trá / Foto: Divulgação

A sensação pós-Rosalía era a de cobrir tabela em um campeonato que já tem o campeão definido. Segui para a Neneh Cherry porque era um tiro certo e não me arrependi: dancei, cantei e encontrei amigos da mesma faixa etária. Outra pausa para cerveja, outra volta e outro “não quero ir muito longe”: cruzamos a ponte do eletrônico e caímos no buraco escuro do live da Veronica Vasicka, aguentando até o nosso limite corporal ao BPM alto da moça que não deu trégua. O caminho de beats mais duros já estava aberto e foi fácil engolir a quadradeira de Avalon Emerson pedindo a conta do festival enquanto o sol nascia ali no mar.

Já era domingo à noite quando meu espírito voltou ao corpo e comecei a juntar os pontos desta edição. Deveria ser normal mas precisou ser um compromisso. Deveria acontecer mais vezes mas ainda parece difícil. Deveria não impressionar mas ainda causa espanto. Não tem problema: seguiremos sublinhando o “normal” com caneta marca-texto para que mais gente consiga ver. Não houve esforço algum para não citar nenhum homem neste texto e isso é o que deveria acontecer sempre que as oportunidades fossem realmente iguais para homens e mulheres.

Quem escreveu

Amanda Foschini

Data

06 de June, 2019

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Amanda Foschini

Jornalista paulistana hiperativa que às vezes puxa o R lá do interior. Viciada em música, açúcar, livros e praia. É mais feliz no verão, acredita nos reviews do Foursquare e sempre dorme no meio filme. Há 5 anos, vive um caso de amor (correspondido) com Barcelona.

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