Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Transmediale é um evento complexo, político, que combina teoria, arte e ativismo digitais com palestras, painéis e instalações. Biopolíticas genética, reconhecimento facial, políticas preventivas, os novos formatos de colonialismo e as fronteiras da privacidade; tudo isso bem apresentado em múltiplas linguagens, como performances, filmes e exposições que reúnem nerds, hack-ativistas e hipsters há 31 anos em Berlim. Em 2018, entre 31 de janeiro e 4 de fevereiro, eles estavam novamente na Haus der Kulturen der Welt para discutir tecnologia sob o guarda-chuva de um tema: “face value” – ou valor nominal da moeda. Ou seja, assumir o valor de algo pelo que ele parece valer.
O festival já na abertura vem dizer a que veio com um “rally” teórico-performático: perguntar o que há de errado com e na (cultura da) internet. É claro que não demorou muito para que o Google fosse representado como o grande inimigo e maior colonizador do território digital, juntamente com um espetáculo em que hipsters e nerds, absorvidos pela tela de seus telefones, pudessem questionar a segurança do paraíso tecnológico e o terror da vigilância digital continuada. Ou colocar perguntas como “Porque ainda não somos uma ‘post-work society’?”
Bastava caminhar um pouco pelo hall lotado para encontrar a instalação do artista Nick Thurston: “Hate Library” – produzida inicialmente para uma exposição na Folsak Gallery, em Varsóvia. A obra consiste em um catálogo de screenshots de fóruns online de extrema direita coletados em 2007, cerca de dez anos antes de Brexit, Trump e todo esse teatro que tem tomado conta da mídia nos últimos dois anos. O artista britânico quer mostrar como a internet ajudou a reunir, organizar e coordenar o discurso nacionalista que é, hoje, uma das tendências políticas mais perigosas da Europa – e que a crescente onda nacionalista não é assim tão recente.
Na mesma linha questionadora, porém esteticamente mais bonita, a instalação “Probably Chelsea”, da artista americana Heather Dewey-Hagborg, em parceria com a hack-gender ativista Chelsea E. Manning. Para a instalação, parte da exposição “Becoming Resemblance”, a obra da dupla trouxe 30 máscaras–escultura que desciam de um pé direito de 5 metros e flutuavam sobre um espaço expositivo branco, amplamente iluminado. A obra consiste em esculturas biogenéticas produzidas com impressora 3D a partir de coleta de DNA que Chelsea enviou para Dewey-Hagborg durante seu tempo de prisão, e exploram um espectro de expressões desse DNA em suas potenciais representações. Os moldes, que são quase como máscaras mortuárias, sugerem ambiguidade de gênero e diversidade étnica, uma vez que a ferramenta capaz de reproduzir imagem a partir do DNA possui apenas 60% de acuidade. As artistas confrontam o uso dessas ferramentas – assim como a fé que depositamos nela para encontrar respostas.
Outro destaque foi a coletiva “Territories of Complicity”, com curadoria de Inga Seidler. O tema território e pós colonialismo foi ambientado em pequenos containers negros e a exposição toma como referência os portos de fronteira livres para investigar as zonas de exceção comercial, além do uso de tecnologia e como elas contribuem para que realidades sócio culturais frágeis sejam formadas. As instalações tocam diversas crises globais pontuais exploradas pelo tema território.
E aqui já dá pra entender a pegada e a polêmica que a edição 2018 do festival levantou: escrever e/ou acessar os discursos, as obras expostas, as performances é um processo de conhecimento e acesso às condições em que foram criadas: as pesquisas, contexto e circunstância em que elas foram pensadas mudam a forma de compreensão. Basear a experiência em termos estéticos não é apenas insuficiente, mas impossível. E, claro, trouxe algumas questões sobre o festival, se “ele é somente para iniciados”. (fuck off, Transmediale).
Além da arte, os keynotes: as apresentações de Jonathan Beller, Lisa Nakamura e Françoise Vergès foram os headliners do Transmediale, e investigaram por diversos ângulos a longa relação entre capitalismo e racismo. Todas as palestras foram pensadas para dialogar com a crise política de valores e sentido da economia global e a sua relação com a cultura digital – desde blockchain até a onda conservadora que ganha ressonância online.
Os painéis trouxeram também as “estreladas” figuras de professores, artistas e pesquisadores como Max Haiven, Nina Power, Rasmus Fleischer, Ewa Majewska, Alex Foti, Nick Thurston e Sybille Krämer.
Um dos pontos alto do evento, mas não menos polêmico, foi a premier mundial da obra de James Ferraro. Em colaboração com o artista visual Nate Boyce, PHØNIX16, e o ator Christoph Schüchner, Ferraro compôs a obra Plague – uma performance-opera sobre Inteligência Artificial. Apocalíptico, o trabalho traz projeções que reproduzem uma rede neural para representar a máquina capaz de aprender e evoluir, e uma performance teatral de um Steve Jobs engatinhando, apavorado com as consequências do seu próprio trabalho e a destruição do mundo pós-tecnológico. Tudo isso acompanhado por um coro com vocais bem construídos, composto por humanos mutantes – ou algo que o valha. Interessante, ingênuo e odiado por grande parte do público nos seus dois dias de performance. Talvez não era essa a expectativa para uma sexta feira ou sábado à noite em Berlim.
Em resumo, o Transmediale é um lugar interessante para quem está interessado em descobrir e atualizar o próprio discurso sobre assuntos relativos à nossa rede mundial de computadores. Lá você encontra pérolas como a declaração panfletária de Eric Schmidt “A internet vai desaparecer”. Mas não vai se consumir, vai sumir em gadgets e utilitários até a gente não perceber mais que ela exista. E também acaba encontrando bastante material para reflexão, afinal a nuvem não é imaterial, mas tem impactos sociais e políticos. Quer dizer, as metáforas mudaram em 31 anos de festival mas, apesar de um sentimento em que o acesso às muitas camadas dos discursos são excludentes, ele ainda é o lugar em que conversas tão específicas ganham alguma ressonância – tanto para o bem quanto para o mal.
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.