Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Eu sempre tive um pé atrás com a Itália. Me incomodava a bagunça, a burocracia e a falta de regras tão arraigados na terra da pizza. Mas admito que é um daqueles preconceitos em que julgamos os defeitos que não queremos enxergar em nós mesmos. Mas como não sou de me deixar limitar à toa, embarquei para Milão junto com a minha sócia Vivian para passar uma semana imerso no maior evento de design do mundo. Em contraste, reservei a semana seguinte para conhecer a Escandinávia. Fazer uma descompressão na organização institucionalizada do norte parecia uma boa ideia.
Foi pisarmos na Europa que veio a notícia: um vulcão de nome impronunciável (apenas por referência: Eyjafjallajökull) tinha entrado em erupção na Islândia. Nós – e metade dos arquitetos do mundo – nem nos preocupamos, já que a Islândia não poderia parecer mais remota e distante do nosso sonho dourado de sofás e lustres e vasos arrojados. Mas conforme a semana avançava, a preocupação dominava todo o continente europeu, e o inominável vulcão seguia cuspindo sua ira cinzenta, que agora investia sobre nosso céu como um monstro na escuridão em filme de terror. O inevitável tinha acontecido: todo o espaço aéreo da Europa estava fechado, inclusive o da Itália.
Seguimos nossa frivolidade cotidiana de coquetéis e exposições, fingindo não nos preocupar com a pergunta fatal – como sair daqui quando nossa reserva acabar? A semana do Salone é a mais movimentada do ano da cidade, e não tinha um quartinho de hotel sequer dando sopa por aí por menos de um órgão vital a diária. Afinal, 2010 era ainda uma era paleolítica pré-Airbnb.
E eis que chegamos ao derradeiro dia do check-out. Nem era preciso olhar o noticiário para saber que as cinzas não tinham dado trégua. Durante todos esses dias, só de olhar para cima já se viam as entranhas do vulcão como uma grossa cortina de veludo cinza que não deixava passar um único raio de sol. Malas em punho, seguimos para a única porta de saída viável para aquela situação, a estação de trem. Seguir para Copenhagen, três países para o norte, obviamente não era uma opção. Passamos por todo o arquivo de amigos que moram na Europa para ver quais seriam destinos possíveis, onde conseguiríamos um sofá para chamar de abrigo. Munidos da lista chegamos ao guichê de vendas de bilhete, não sem curtir antes uma boa dose de fila no frio do começo da primavera.
Paris? Cinco dias. Barcelona? Uma semana. Londres? Sem previsão. Não existia um bilhete esquecido em qualquer trem lotado pelos próximos dias. Eu ia lembrando das aulas de geografia do finado professor Sergio no ginásio, e ia elencando cidades para ver se alguma colava. Meu único objetivo era claro, sair da Itália. E foi assim que me deu um estalo. Zurique? A moça do caixa arregalou os olhos, disse que tinha bilhetes para dali há dois dias, se aproximou do vidro que nos separava e sussurrou: ‘Mas entra no próximo, senta e não fala nada. Finge que está tudo bem e vai.’ Ah, Itália, que hora para me dar uma aula de brasilidade e jogo de cintura! Bilhete na mão, e corre para a plataforma!
O que eu não esperava era que esse bilhete me transportaria direto para 1910. Imagine o que uma semana de voos cancelados se acumulando no guichê é capaz. A cena da estação central de Milão (e imagino que de toda a Europa) era do mais absoluto caos. Gente tentando sair a qualquer custo, para onde for. Homens, mulheres, idosos e crianças aos montes. Malas, malas e mais malas entupiam as plataformas. Tenho a impressão inclusive de ter visto alguém cuidar de sua higiene pessoal no meio da muvuca como se fazia no século passado, mas não vou entrar em detalhes.
Clandestinamente embarcados no trem que não nos pertencia, escolhemos lugares mais escondidos para não chamar a atenção de algum fiscal que estivesse passando. Como o comboio se pôs em marcha com uma boa quantidade de assentos vazios, parecia que tudo estava resolvido, mas a jornada estava só começando. Nem uma hora de viagem tinha passado quando o alto-falante deu um aviso claro: quem não tem reserva para este trem deve descer na próxima estação! E assim nos vimos largados em uma pequena gare em Lugano, já em território suíço. Preocupada, a Vivian me perguntou o que fazer, e eu, com o peso da responsabilidade de líder da equipe, simplesmente não tinha ideia. ‘Vamos sentar cinco minutos nesse banco para respirar um pouco’. Mal deu tempo de inspirar e o silêncio foi cortado por outro trem pousando na nossa frente. ‘Quem vai para Zurique?’, gritou o cobrador pendurado na porta. Ainda ganhamos de presente uma das viagens mais bonitas que já vi, cortando os Alpes em degelo, passando por vilarejos e castelos que nem Walt Disney saberia descrever. Devia ser nosso dia de sorte.
O fim do sonho chegou com o fim da tarde, e a bilheteria no centro de Zurique. A sala envidraçada parecia um cartório em horário de rush, e a nossa senha estava algumas dezenas à frente do marcador eletrônico. Fomos dar uma volta no quarteirão para pelo menos poder dizer que vimos a cidade, e para procurar o melhor canto da estação para dormir sentado se assim o destino quisesse. Na nossa vez, a simpática vendedora só deu más notícias, não muito diferentes das que recebemos em Milão. França, Espanha, Inglaterra, nada disponível. E estando os planos B, C e D fora de cogitação, voltamos ao plano A. Agora ao menos nos faltavam só dois territórios a conquistar no jogo de War da vida real. Só tinha um problema: conseguimos passagens até a Dinamarca, mas reservas de assento só até a Alemanha.
Já estava escuro quando embarcamos para Hamburgo, com uma parada para troca de trens e uma merecida wiess bier em Stuttgart no meio da madrugada. O sol já tingia o céu de laranja quando chegamos amassados e mal dormidos na estação central da segunda maior cidade da Alemanha. Sabendo do risco que corríamos de ficar sem lugar na nossa próxima baldeação, pegamos o primeiro sanduíche que tinha numa vitrine qualquer e corremos para guardar lugar na plataforma. Mas nada nos preparou para o que ia acontecer. Chegava gente e mais gente, e mais gente a cada minuto. As plataformas vizinhas mantinham a placidez germânica habitual, mas a nossa parecia piscina pública no verão chinês.
E então chegou o trem.
Nem toda minha vivência com a Estação da Sé em dia de chuva poderia me preparar para aquilo. Escandinavos, alemães e qualquer outras nacionalidades que estava ali se debatiam entre braços, pernas e malas para tentar se esgueirar pelas estreitas portas da carruagem. Se em Milão regredimos 100 anos, em Hamburgo voltamos para a selvageria da Idade Média. Até a polícia teve que intervir, bloqueando as portas com seus troncos germânicos pesados. Ninguém mais entra! E nós do lado de fora.
Se o destino tinha algum motivo para me fazer estudar alemão por 13 anos, deve ter sido esse dia. Mesmo com a camada grossa de ferrugem que se acumulava sobre essa minha área de conhecimento, e a absoluta perplexidade com o que tinha acontecido, consegui pescar as poucas palavras chaves do anúncio feito no auto-falante: ‘Copenhagen…. 5 ônibus… saída principal da estação.’ Vivian, corre!
Chegamos ao saguão e a imensa fila já estava formada. Nossa posição era desesperadora por não permitir nem contar quanta gente tinha à frente, mas nos dava esperança suficiente por conseguir ver quanta gente estava para trás. O prédio de ferro de vidro abria sua bocarra para a avenida em frente e engolia um pequeno tufão congelante, e a trilha sonora era uma bateria de queixos batendo. Sorte que a prefeitura disponibilizou não só o transporte rodoviário alternativo, mas também uns poucos anjos que passavam pela fila servido café e chocolate quente gratuitamente. Um pouco de civilidade, finalmente. Chega o primeiro ônibus, entram 30 ou 40 pessoas, fecha a porta e vai. Vem o segundo, o terceiro, o quarto, e nós ainda ali. No quinto, a ansiedade era tanta que não conseguíamos nem raciocinar se estávamos na zona de rebaixamento. Deixa rolar. E assim foi, entrando um a um, até que entramos, e a porta se fechou depois do senhor atrás de nós. Será que conseguimos chegar agora?
Não, a jornada ainda continuava. Passando por Flensburg, na divisa entre a Alemanha e a Dinamarca, o ônibus encostou na beira da estrada, e os passageiros começaram a descer levando todos os seus pertences. Eu jurei para mim mesmo que dali não sairia enquanto não fosse escorraçado, mas desisti de dar vexame quando vi que o destino era inevitável. Estávamos no meio do nada literalmente, e só havia uma pequena construção ao longe atravessando um gramado mal cuidado. Sem placas nem informação nem nada. Nessas horas, o bom viajante sabe que o melhor a fazer é seguir as massas sem questionar, e assim fomos para o tal predinho, que se revelou um porto de embarque em um ferry boat gigantesco, com duty free e tudo. A travessia da fronteira seria por via marítima. Que alívio ter um pouco de espaço para circular, fazer um mini piquenique de café da manhã no deck, observando as gaivotas gulosas e as imensas hélices dos moinhos da energia eólica do Mar Báltico.
Do outro lado, sinceramente já nem sabíamos muito bem onde estávamos. Mais uma vez um trem nos esperava no desembarque, e esse sim nos levaria finalmente até Copenhagen. Fui ao banheiro já exausto para tentar pelo menos enxaguar o rosto. Esperei longuíssimos minutos do lado de fora, mesmo estando o nosso vagão quase completamente vazio. Até que chegou uma mãe a bater na porta e gritar em uma língua incompreensível, olhando envergonhada para mim. A porta se abriu e saiu de lá um menino louro de não mais de 7 anos. Ela se desculpou em inglês, e me explicou que ela, o marido e os 3 filhos estavam a 5 dias tentando chegar em casa na Finlândia, que os meninos estavam ‘um pouco estressados’. E eu ali me lamentando por estar só há mais de 25 horas em trânsito.
A chegada a Copenhagen veio sem mais surpresas, com exceção dos primeiros raios de sol que eu via em mais de uma semana. As cinzas estavam se dissipando, e em um ou dois dias a situação dos voos se normalizaria. Com certeza o caos agora se transferiria das estações de trem para os aeroportos, mas eu não queria nem pensar nisso. Depois de 5 trens, um ônibus, um barco e quase 1500km rodados, naquela hora eu só queria um banho, uma cerveja, e passar os próximos dias me locomovendo exclusivamente com bicicleta. Minha sorte foi escolher o destino perfeito para isso.
Esse texto foi elaborado durante a ‘Oficina de Criação de Contos e Crônicas de Viagem‘, que a nossa colaboradora Gaia faz frequentemente. A ideia do workshop é dar algumas ferramentas para o viajante soltar a mão e começar a colocar suas experiências no papel para poder compartilhar com os outros. Se quiser participar do próximo, fica de olho no Insta dela, ou então assine a newsletter do How To Travel Light, que ela sempre anuncia quando vai ter.
*Foto de capa: imagem de satélite da nuvem de cinzas sobre a Europa setentrional – Flickr | NASA
Para o Renato, em qualquer boa viagem você tem que escolher bem as companhias e os mapas. Excelente arrumador de malas, ele vira um halterofilista na volta de todas as suas viagens, pois acha sempre cabe mais algum souvenir. Gosta de guardar como lembrança de cada lugar vídeos, coisas para pendurar nas paredes e histórias de perrengues. Em situações de estresse, sua recomendação é sempre tomar uma cerveja antes de tomar uma decisão importante. Afinal, nada melhor que um bom bar para conhecer a cultura de um lugar.
Ver todos os postsAdorei! Deveria escrever mais contos de viagem.
Amei!! Relembrei de tudo com muita saudades!!
Amei!! Relembrei de tudo com muita saudades!!
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.