Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
A cidade do Porto foi a minha penúltima parada antes de voltar para São Paulo. Depois de deixar todas as economias entre Barcelona e Provence, Porto foi o alento para a economia que eu precisava fazer (você já viu quanto está custando o euro?).
Dicas para explorar a cidade vinham de todos os lados. Um amigo, de muito bom gosto, mandou uma listinha para guardar no coração. Nela constava: não deixe de visitar Leça da Palmeira, em Matosinhos, a zona 4 de Porto. “Lá você vai encontrar o lugar mais maravilhoso, a Casa de Chá de Boa Nova“. O texto vinha ainda em tom poético: “ao mesmo tempo que nos permite sentir o último raio de sol, justamente quando já nos esquecemos do nosso corpo. Mar, charlote de chocolate e muita tranquilidade.”.
O que você entenderia? Uma casa de chá onde você comeria uma ótima charlote de chocolate. Ponto. Eu e o Renato, que estava viajando comigo, decidimos ir tomar um chá, conhecer a casa e depois seguir para a Piscinas de Maré, obra famosa do arquiteto Álvaro Siza, o mesmo da tal casa.
Seguimos mulambentos e despretensiosos até Matosinhos num hop-on drop-off (não nos julguem), que nos deixaria a apenas três quilômetros da casa de chá. Descemos, pegamos um táxi que nos deixou na frente da casa à beira-mar. Subi a escadinha e segui o corredor até a porta. Por ali tudo silencioso. A impressão é que estava fechada. Ao chegar na porta me deparei com o quê? Uma placa “1 estrela Michelin”. Tremi e gargalhei. Não entraríamos na casa, o Renato, que é arquiteto, ficaria super decepcionado de ir até ali e não poder entrar e voltaríamos rindo da nossa falta de pesquisa. Mas peraí, uma casa de chá Michelin? Como pode? Pode sim, porque nem casa de chá era o lugar.
Vamos voltar um pouquinho na história que não tivemos o cuidado de pesquisar (quem tem tempo livre em Porto?). A Casa de Chá de Boa Nova, como é chamada, foi construída em 1963 pelo ainda jovem arquiteto Álvaro Siza. Ela foi projetada a partir de um concurso organizado em 1956 pela Câmara Municipal. Quem ganhou o concurso na real foi o arquiteto Fernando Távora. Após a escolha do terreno, nos penhascos da costa de Matosinhos, o ganhador entregou o projeto ao seu colaborador, Álvaro Siza. Este é, aliás, um dos primeiros projetos de Siza. A Casa de Chá fechou depois de anos e na década de 1990 uma forte tempestade destruiu parte da casa e dos móveis. Em 2013, 50 anos após sua inauguração, o mesmo Álvaro Siza transformou o espaço em um restaurante para o chef português Rui Paula. Em 2014, o restaurante Boa Nova reabriu, agora sem a casa de chá, onde o espaço passou a ser ocupado por uma área extra para o jantar. O nome permaneceu porque a casa é tombada, é patrimônio nacional, e não pode mudar nada.
Nos entreolhamos, a porta abriu, o maître nos olhou já pegando o menu e se desculpando que a essa hora (já passava das 14h) só seria possível servir o menu de 4 tempos. Como você recusa a entrar num lugar desses mesmo que vá ter que voltar para o Brasil e parcelar o cartão em muitas vezes para pagar a conta? Sorrimos e entramos.
Eu sou uma pessoa bem chata com comida. Menu degustação nunca foi algo que me apetecesse, porque eu como pouco, bem pouco. Mas ali estávamos e eu ia ter que encarar. Mas eram apenas 4 pratos, então estava tudo bem. Entramos no belo salão onde poucas mesas cheias preenchiam o pequeno espaço. Fomos colocados estrategicamente numa mesa com vista para o mar. Todos à nossa volta, obviamente, estavam trajados dignamente para a classe do restaurante. Eu me sentia meio “mendiga rica” no meu traje meio esporte, meio frio, meio praia com o tênis cheio de areia, meio descabelada por conta do vento no ônibus (você já conheceu alguém que foi a um restaurante com estrela Michelin de hop-on drop-off? Pois agora conhece.).
Eu não sabia o que esperar, porque para quem não sabe, eu sou bem caipira no terreno da alta gastronomia. Estou sempre fugindo dela. O cardápio oferecia duas opções de menu de quatro tempos. O maître sugeriu que cada um de nós pegasse um, pois assim poderíamos experimentar ambos. E, já que estávamos na lama, pedimos também a harmonização de vinhos.
Eu não sei escrever sobre comida e vai ser difícil descrever a experiência que tive, mas ela valeu cada centavo de euro e eu quis abraçar cada prato servido. E, para você que está achando que paguei o que o Michelin do lado de cá do oceano cobra, eu conto tudo: o menu custou 90 euros e o menu harmonização, 45 euros. Ou seja, 135 euros por uma experiência apocalíptica e sensorial para as minhas papilas gustativa (só não vale converter, porque aí ferrou). Apocalíptica porque nunca mais serei a mesma e passei, desde então, a sonhar com as coisas que explodiam na minha boca, a espuma que tinha um gosto divino, a delicadeza de cada pedacinho que saboreei. Realmente o tal food porn is real se materializou. O mundo acabou para mim e eu constatei que eu não tenho o paladar infantil, eu tenho o paladar fresco, bem fresco.
Os quatro tempos viraram oito. Fomos avisados que ganharíamos alguns mimos antes de iniciar nosso menu e, quem sabe, no meio dele. O atendimento foi impecável e simpático do começo ao fim (só faltou ganhar uma massagem). Foi assim que a Ninfa, um espumante do Tejo de 2014, escorreu para a minha taça de cristal como aperitivo. Junto veio um cartão intitulado “introdução” contando um pouco da história de Portugal e suas influências gastronômicas, que estariam presentes em toda nossa refeição. E então, majestosamente, foi colocada uma caixa de madeira pequena à minha frente. Abri e me deparei com um enrolado de frutos do mar numa folha de alga e uma minúscula garrafa que guardava uma folha crocante envolta num pedaço fino de salmão. Para acompanhar, um crème brûlée de ouriço do mar. Ajoelhei!
Ali o chef já deixou claro: vou levar vocês para uma viagem celeste enquanto estiverem aqui. Preparem-se! Peguei o capacete e decolei. Fomos então servidos com um novo presente, um prato com carpaccio de vieiras, mariscos, frutas vermelhas e outras coisas que não soube identificar. Em êxtase que eu estava, eu não consegui sequer perguntar o que era. Apenas comi e fui feliz!
O maître finalmente nos avisou que começariam a servir o menu oficial. O meu, escolhido pelo restaurante, era bem mais leve que o do Renato, que contou com prato com foie gras, enguia e tâmara, cabrito e tamboril. Agradeci secretamente por, provavelmente ser mulher, terem me dado a opção mais leve.
Para começar a degustação, fui servida de vinho branco Quinta de Santiago Alvarinho 2016, um terroir único da região. Vinho elegante e complexo com notas tropicais e cítricas intensas. Vinho branco bom como poucas vezes tomei. O primeiro prato foi uma espetada com lula e gamba branca (um camarão grande). Eu, que não sou fã de camarão, sequer lembrei desse detalhe. O prato consistia em lula da costa portuguesa, pimento, gamba branca e molho verde, acompanhado de um verdadeiro twist por conta do molho e o pimento preparado de forma crocante. O camarão estava firme e suculento, enquanto a lula estava extremamente macia.
Enquanto eu escorregava pela cadeira abraçada na minha taça de vinho, sonhando com o mar à minha frente e já achando que eu era o ser mais feliz do mundo, a sommelier Magda colocou uma nova garrafa à minha frente. Ali estava um dos melhores vinhos brancos que eu já tomei na vida, o Munda Encruzado (Dão) 2015. O Munda foi um abraço apertado. Quente. Encorpado e de acidez delicada. Numa rápida pesquisa que fiz, descobri que este é o vinho branco estrela do Dão.
A descrição do prato seguinte despertou minha curiosidade. Era uma pescada da Póvoa de Varzim acompanhada de lírio defumado, salicórnia (um tipo de sal marinho verde conhecido como aspargo do mar por parecer com aspargos verdes), rouille (molho feito à base azeite de oliva com pão ralado, alho, açafrão e pimenta caiena), e, por fim, plâncton. Sim, plâncton. Eu não tinha a menor ideia que se comia e/ou era possível comer/preparar plâncton. Eu olhava pro prato e a única coisa que eu conseguia identificar era a pescada e o restante eu fui deduzindo. Sabores marcantes que ficavam ainda mais acentuados após um gole do vinho. A pescada estava no ponto perfeito e surpreendia com o gosto forte e marcante do rouille que se misturava elegantemente ao plâncton, que tinha textura de seda, era levemente oleoso e deixava um gosto longo na boca.
Confesso que eu já estava satisfeita após esses quatro pratos degustados. Àquela altura, eu já ficaria só na harmonização. Mas como não era possível, fiquei ali ansiando pelas próximas texturas, sabores e cores, diferentes de tudo que eu já experimentara anteriormente na minha vida. Eu estava me saindo bem. Nesse interlúdio fomos cumprimentados pessoalmente pelo simpático chef Rui Paula. Eu quase levantei da mesa e dei um abraço nele.
A Magda (a minha preferida da casa) retornou à mesa com um Quinta da Costa do Pinhão 2015, da região do Douro. Que vinho! Novamente um branco, mas que veio com um estranhamento acompanhado de prazer, pois apesar de branco, ele tinha um sabor que me remeteu ao vinho tinto (olha como eu não manjo nada). Ele tinha uma cor dourada com sabor fresco e intenso. Aromas cítricos, flores brancas com ligeira nota da barrica e de pimenta branca se misturavam nele. Foi o meu favorito. Junto foi servido o prato principal e o último da degustação, um peito de pintada (nossa galinha da angola) com purê de cebola, cebola grelot (oriunda da França e deliciosa), molho de estragão e crosta viennoise. Tudo derretia na boca. Sabor um pouco mais intenso que os pratos anteriores finalizando com as cebolinhas grelot com sabor caramelizado e a carne macia.
Eu e o Renato olhávamos contemplativos para tudo. As louças perfeitas, uma diferente da outra, talheres de prata, copos e taças de cristal, o atendimento gentil, a experiência nova e inesperada. Silêncio. Apenas o silêncio. As ondas se quebrando nas pedras apinhadas em frente ao pequeno terraço do restaurante. Eu, que não sou fã de doces, poderia parar por ali. Mas antes mesmo da sobremesa chegar, fomos convidados a conhecer a cozinha, que já estava encerrando os serviços. O chef Ricardo Tiago, responsável pelos doces da casa, nos presenteou com um vinho do porto. Já na mesa recebemos um novo mimo (gente, eles nunca acabam!), uma versão revisitada do nosso Romeu & Julieta, feito à base de espuma. Saborosíssimo e de comer de olhos fechados. Enquanto eu escorregava na cadeira pedindo arrego, a Magda voltou com uma garrafa de Blandy’s Madeira Bual envelhecido 10 anos, um vinho tinto complexo e intenso, perfeito para acompanhar queijos e sobremesas.
O vinho seria harmonizado com a minha sobremesa final: um mousse de manteiga de amendoim com mousse de chocolate, namelaka de banana e ivoire, brownie de chocolate de amendoim e gelado de manteiga de amendoim salgado. Primeiramente foi colocado um prato cortado ao meio à mesa como parte da sobremesa. Mas tcharãm! A outra metade logo chegou se encaixando à que já estava na mesa com o restante da comilança.
Já tinham se passado 2 horas e meia desde que eu tinha avistado a tal placa Michelin. Depois deste verdadeiro banquete servido quase em forma de arte, perguntaram-me se eu aceitaria um café. Para não decepcionar, veio junto um carrinho de mão até a minha mesa, com gavetas que foram se abrindo com opções diversas para acompanhar o café, um expresso muito bem feito com grãos de algum país nota dez no assunto – país esse que o excesso de vinho não me permite lembrar. Escolhi meu docinho, tomei meu café e então agradecemos o Igor, o maître que, com seu sorriso, nos convenceu a se aventurar na orgia gastronômica que tivemos.
Por fim concordamos sobre a merecida estrela Michelin. Se existe comida feita com alma, posso afirmar que a do Rui Paula é. A cozinha é criativa, usa e abusa de ingredientes locais, alguns deles totalmente menosprezado pela maioria e outros ignorados. O restaurante conta com apenas 14 mesas, por isso é recomendável reservar. Nós tivemos sorte porque a alta temporada ainda batia à porta da região. A cozinha conta com 13 pessoas, sendo um deles um brasileiro (estamos em todos os lugares, não é mesmo?), um ganês e um italiano. O menu do almoço e do jantar é o mesmo e há opções de 4 e 8 tempos. Mas o segundo vale mesmo para quem realmente come bastante, porque até o Renato se contentou com o primeiro. E, detalhe: a estrela Michelin foi conquistada com apenas dois anos de portas abertas do restaurante, ainda em 2016.
O chef Rui Paula conta com mais dois restaurantes: o DOP, no centro de Porto; e o DOC, em Folgosa, no Douro.
Caso você, por qualquer motivo que seja, não possa ter uma refeição por lá mas adoraria conhecer o projeto arquitetônico da casa por dentro, é possível agendar visita prévia guiada com a Casa de Arquitectura. Elas ocorrem de terça a sábado, às 10h (preferencialmente) ou às 16h e duram entre 45 e 60 minutos. O valor é 6 euros.
Lalai prometeu aos 15 anos que aos 40 faria sua sonhada viagem à Europa. Aos 24 conseguiu adiantar tal sonho em 16 anos. Desde então pisou 33 vezes em Paris e não pára de contar. Não é uma exímia planejadora de viagens. Gosta mesmo é de anotar o que é imperdível, a partir daí, prefere se perder nas ruas por onde passa e tirar dicas de locais. Hoje coleciona boas histórias, perrengues e cotonetes.
Ver todos os postsmatéria surreal, gostei demais nos leva a cada momento e a cada receptividade de cada personagem dessa lindíssima aventura.
obrigada :)
que é isso?!
ainda tô processando essa matéria!
Hahahaha. Isso é bom?
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.