Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Para ler esse texto, recomendo essa trilha, que foi gravada no AfrikaBurn 2017:
‘Imagine all the people living life in peace…’ dizia Lennon naquela música que todo mundo sabe cantar um pedacinho sem embromation nenhum. Pois o mundo de paz que o Beatle imaginou só é possível assim: não tem países nem religiões; ninguém tem posses e portanto não existem ganância nem fome; e não existem também o paraíso e o inferno, apenas o céu azul sobre nossas cabeças. Demorou décadas, mas finalmente alguém parou de sonhar e resolveu construir essa utopia, mesmo que ela seja para uns poucos e se acabe em um piscar de olhos. Estou falando do AfrikaBurn, o filho pródigo do Burning Man, que acontece todos os anos no deserto de Tankwa, na África do Sul, há 15 anos já.
A pergunta que eu mais tive que me esquivar quando contava para as pessoas que eu estava indo para lá era: ‘Festival de quê?’ O AfrikaBurn não é um festival de música, nem de arte, nem de nada específico, mas sim de tudo junto ao mesmo tempo. Uma vez eu respondi que era um festival de antropologia, e acho que foi quando me aproximei mais da resposta certa. Do momento em que me convencerem de que eu deveria ir até eu estar dentro do caminhão em direção a Tankwa Town, tudo que eu tinha na minha cabeça sobre essa experiência era que: 1 – eu passaria muito perrengue; 2 – lá só teria um bando de loucos fantasiados, então o melhor seria me juntar a eles; e 3 – estaríamos completamente isolado do mundo, para o bem e para o mal. O que eu não imaginava é que esses três fatores combinados criariam um ambiente totalmente único e novo para mim, com uma sociedade que se constrói com a igualdade, a comunhão, a alegria e principalmente o aprendizado.
Não vou relatar detalhe por detalhe o que aconteceu no AfrikaBurn 2017. Temos já o relato da Lalai do ano passado (no fim pouca coisa muda), e esse texto incrível da Amanda, que estava agora comigo. Os dois pintam um quadro maravilhoso do que é a semana em qualquer um dos Burns. O que tenho para dizer é que o tal ‘festival de antropologia’ foi uma verdadeira escola para mim. Aquelas coisas lindas que sonhamos quando cantamos com o Lennon são realmente possíveis, mas elas só podem acontecer se nós lutarmos por elas. Naquele microcosmo longínquo, sem as interferências da política, da economia, da moral e dos bons costumes, a raça humana é capaz de coisas incríveis, que só vivendo dá para ver. ‘Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único.’
Entre tantos pequenos ensinamentos, consegui reunir no furacão que se formou na minha cabeça uma lista com as 5 grandes lições que o AfrikaBurn me deu.
Sim, eu sei que você diz que acredita na igualdade, e prega isso no dia-a-dia. Mas como o racismo, a falta dela está arraigada nos menores aspectos da nossa vida e sequer percebemos. A tua cara, tuas roupas, o lugar que mora, o teu jeito de falar, tudo é motivo para que o tratamento que você recebe seja diferente do outro. O cenário escolhido para os maiores Burns ser o deserto deve ser de propósito. Ali não tem água, não tem verde, não tem nada. Nessa aridez completa, nós pobres seres humanos somos obrigados a enfrentar nossa condição mais primitiva. Não existem privilégios. Ninguém tem sequer uma sombrinha de árvore a mais que os outros. Tudo o que temos é o sol inclemente, as pedras do chão e uns aos outros. E juntos temos que achar um jeito de dividir a comida improvisada, a água não tão limpa, os banheiros esdrúxulos e todos os outros perrengues que todo mundo passa igual. Ao mesmo tempos, dividimos nossos melhores sentimentos, os mais sinceros abraços, e o pôr-do-sol que nem filmes da Disney conseguem recriar.
Em Tankwa Town não tem dinheiro, então o mais milionário dos seres ali tem tanto a oferecer quanto o mais pobre. Não é possível se comprar vantagens, facilidades, nada… Só gelo. Então o valor agregado está nas ações, e não nas coisas. Então quanto mais você dá, mais recebe. A cultura do gifting, uma das ‘regras’ que os burners devem seguir, tem efeito dominó. Os gifts vão desde presentes elaborados como colares e trabalhos artísticos, até borrifadas de água nas costas quando você está escaldando no sol. Em um cenário de absoluta escassez, vivemos em um regime de abundância, porque o acúmulo não tem sentido.
A partir do momento em que somos iguais, conquistamos a liberdade de sermos diferentes, únicos e originais. A individualidade é não só permitida ao extremo, como celebrada. Julgamento é algo que não passa na porta por ali. E só assim conseguimos ver o quanto a humanidade é diversa. Lá tem gente fantasiada e gente de roupa comum. Gente sem roupa nenhuma. Gente pintada da cabeça aos pés e gente que pinta só as ‘partes’. Tem brancos e (infelizmente muito poucos) negros. Tem frito, tem iogue, e tem iogue-frito. Tem casal de idoso e bebês de colo. Montes e montes de crianças. Gente vestida de unicórnio, dominatrix, Tina Turner, Borat, flamingo, Cleópatra, steampunk, monge, ET e o que mais a imaginação mandar.
Gordos e magros, velhos e novos fazem fila peladões para tomar banho, enquanto as crianças passam e não ficam de risadinha. Tem gente presa a um pelourinho levando umas palmadas na bunda na frente da playa, onde tudo acontece. No casamento coletivo, o ‘pastor’ celebra a união de homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, gente com animal, gente com telefone, gente com o vento, e até gente com o disco favorito do David Bowie. Você escolhe com quem quer casar. O corpo não é motivo de piada. A sexualidade também não. O amor, muito menos.
Numa sociedade como essa, para tudo dar certo precisam existir regras – ou princípios, já que ninguém vai preso se não seguir, mas vai ser mal visto. No Burn elas são apenas 11, e a maioria delas fala sobre a coletividade. Para que ela exista integralmente, as pessoas precisam se colocar a disposição do todo. Tal e qual foi demonstrado pelo Experimento de Stanford, que somos capazes das coisas mais assombrosas quando o meio nos permite, eu acredito que também podemos nos deixar influenciar muito para o bem, se o meio nos mostra os benefícios que o trabalho em conjunto traz. Então valores como participação, responsabilidade e aprendizado ganham slogans fofos repetidos à exaustão para não deixar dúvida. E todo mundo no fim entra na dança.
‘One burner, one shift‘: quando você compra seu ingresso para o Burn, você está ciente de não ser um mero espectador, e sim um participante. Quase todas as atividades são organizadas com voluntários, como a limpeza, o posto médico, segurança das fogueiras, recepção de novatos, etc. Você escolhe com o que e quando quer trabalhar e aparece na hora para cumprir seu dever. Em uma semana, se todo mundo fizer um único turno, que dura geralmente 3 a 4 horas, todas as atividades estão completas. É bem pouco, não?
‘Leave no trace‘: um dos pilares dos Burns é o respeito à natureza, e para tanto, quando o festival acaba, não deve sobrar rastro do que aconteceu. Então você tem que se responsabilizar por todo o teu lixo o tempo todo. Você carrega a tua latinha de cerveja, a bituca do cigarro, o papel do chiclete e o paetê que caiu do chapéu, para levar tudo embora no fim. Se cada um cuida da sua sujeira, tudo vive limpo. É algo que parece tão óbvio, que não é possível acreditar que não conseguimos viver em cidades limpas também.
‘Each one teach one‘: mais um exemplo de efeito dominó do bem. Se você viu alguém deixar um lixo qualquer no chão, vai lá e avisa. Essa pessoa vai ficar envergonhada, vai catar o lixo, e vai carregar essa lição para sempre. E vai passar adiante.
Uma semana inteira no meio do nada, sem luz elétrica, sem sinal 4, 3, 2 ou 1G, sem a última temporada da série do Netflix, sem carro para fugir, nada. Como você preencheria o teu tempo? A gente hoje vive tão louco com celular e redes sociais que parece que nunca mais deixamos a cabeça descansar. Sobrou um minuto entre uma frase e outra da conversa e já estamos olhando o Instagram para saber o que estamos perdendo da vida dos outros. A sensação de transformar o celular em uma mera máquina fotográfica, e ter só o seu entorno como referência de tempo e espaço é quase vintage, mas gratificante.
Em Tankwa, tem atividade rolando o tempo inteiro. Tem gente fazendo festinha aqui, gente dando comida ali, aula de yoga não sei onde, e por aí vai. Mas não tem um manual, uma programação, nada para você se guiar. E não precisa ter. Porque se perdeu algo hoje, provavelmente você estava fazendo algo legal, e pode tentar no dia seguinte. E sobra tempo para fazer tudo que você tem vontade. Inclusive para ‘perder tempo’, algo que hoje é impensável. Fora que, com o tempo passando mais suave, sem pressa, conseguimos reservar uma parte dele para a simples contemplação. Acredite, tem muita coisa para contemplar. A interação das pessoas e suas extravagâncias com as obras de arte, os carros mutantes e a luz do sol é todo um espetáculo. A cabeça esvazia, o corpo relaxa e a alma agradece.
E depois de uma semana tão carregada de estímulos, o AfrikaBurn chega ao ápice com a lição mais importante de todas, que também trata do tempo. Tudo que essa gente criativa cria junto, todas as esculturas e espaços que viram parte da vida em Tankwa, tudo vira cinzas, sem dó. As fogueiras, ou burns, são sempre acompanhados por muitos espectadores, que não arredam o pé enquanto tudo não vem ao chão. Com isso percebemos a finitude das coisas. O ciclo de cada edição de um Burn se encerra depois de uma semana. Aquele mundo mágico e pacífico, aqueles pontos de referência para aquele microcosmo, as instalações de arte mais lindas que você já viu, nada disso permanece. Tudo acaba, desapegue.
O momento auge do AfrikaBurn é a queima do Templo da Gratidão. São mais de 10 mil pessoas reunidas em silêncio sepulcral, assistindo desmoronar o símbolo máximo daquela mistura muito louca de sensações que o festival todo nos faz experimentar. A finitude das obras, e do próprio festival, vem como um soco no estômago de clareza. De que temos pouco tempo para viver as coisas, que os ciclos se encerram mais rápido do que podemos desejar ou controlar, e temos que estar alertas e cientes para vivê-los ao máximo antes que o próximo chegue.
Parece papo de badauê-new-age, mas os clichês existem justamente por serem a confirmação da verdade. A gente acha que é fácil fazer tudo isso, mas a verdade é que praticamos muito pouco disso tudo no nosso cotidiano. Viver em uma realidade tão alternativa, tão fora do que estamos acostumados, faz voltarmos com os pés mais firmes no chão e os olhos mais abertos. Recomendo sem moderação.
PS: Outra lição que aprendi, é que o AfrikaBurn não seria possível sem o LED. Ao inventor do LED, gratidão!
Para o Renato, em qualquer boa viagem você tem que escolher bem as companhias e os mapas. Excelente arrumador de malas, ele vira um halterofilista na volta de todas as suas viagens, pois acha sempre cabe mais algum souvenir. Gosta de guardar como lembrança de cada lugar vídeos, coisas para pendurar nas paredes e histórias de perrengues. Em situações de estresse, sua recomendação é sempre tomar uma cerveja antes de tomar uma decisão importante. Afinal, nada melhor que um bom bar para conhecer a cultura de um lugar.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.