Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
A Setouchi Triennale chegou em sua terceira edição trazendo um belo recorte da arte contemporânea mundial. Não há um tema que permeie suas edições, mas os artistas convidados se apropriam do espaço e seu entorno para criar sua obra, muitas site specific. Há uma harmonia, e às vezes um estranhamento, em cada instalação. Como a arte, na maioria das vezes, é um reflexo do mundo em que vivemos, há muitas obram que traduzem isso.
A trienal de artes acontece em três períodos distintos no ano em que ela ocorre, na primavera, verão e outono. Há algumas diferenças entre cada uma. Alguns lugares entram, outros saem, de acordo com a estação e até mesmo algumas obras são transferidas de lugar. Nós visitamos a última temporada, ou seja, outono. São doze lugares diferentes, sendo dez ilhas, e também duas cidades, Takamatsu e Uno.
A edição de 2016 contou com cerca de cem novas obras de artistas japoneses e internacionais. E por que novas? Porque a Trienal mantém obras de edições anteriores, além das permanentes existentes nos museus locais, como o Chichu Museum, em Naoshima, e o Teshima Art Museum, que também integram o festival. O total oficial de obras para ver é 206, mas os museus contam cada um como “uma obra” e neles há muito mais coisa para ver. Um exemplo é o Chichu, que tem três salas abrigando três artistas, mas é contado como uma única instalação. Além das obras e instalações, também acontecem diversos eventos, performances, leituras e até mesmo experimentações gastronômicas. É uma bela e emocionante maratona para quem ama artes.
É complexo explicar o que é a Setouchi Triennale, especialmente se você não é um expert em arte. Ela se mistura a tudo que já existe nas ilhas do Mar Interior de Seto, que abrigam museus, obras de arte e instalações espalhadas por diversos lugares. Estar na trienal é incrível pela dinâmica em que ela rola. A parte boa é que mesmo que não seja possível você ir à Setouchi Triennale 2016, que termina dia 6 de Novembro, dá para fazer esse emocionante circuito das ilhas depois dessa data e, de quebra, ver várias obras que integraram a edição. E vale muito, mas muito a pena. Apesar de ser outono, pegamos dias ensolarados, alguns quentes, outros mais agradáveis.
Fizemos a viagem em cinco dias, porém apenas três dedicados ao festival. Não conhecer essa área do Japão, entender horários de balsas, transporte, etc., acabou prejudicando um pouco a visita. Mas, ainda assim, ter ido à Setouchi Triennale foi uma das melhores experiências que tive com arte recentemente. Há tempos eu não me emocionava com arte como me emocionei nessa temporada. Se chorar é para os fracos, sou um deles. Então a primeira dica é: leve uma caixa de lenço, pois talvez você irá precisar. E um bom tênis.
O ideal para a visita são no mínimo cinco dias. Mas quem quiser ver tudo, vai precisar de pelo menos sete. Diferentemente de Inhotim, que é um parque-museu, mas as obras e espaços estão à walking distance, na Setouchi Triennale não é o que acontece. As obras estão espalhadas por todos os cantos mais inóspitos de cada ilha que abriga o evento. As ilhas maiores, como Naoshima e Teshima, pedem pelo menos um dia inteiro para se ver tudo. Ainda assim, talvez não consiga. Já as ilhas menores são possíveis de se visitar duas por dia.
Algumas ilhas como Naoshima, Shodoshima, Ogijima, Teshima e Inujima são visitadas regularmente independente da trienal, pois possuem espaços de arte permanentes e se movimentam em torno deles. Por isso, muita gente chega lá sem saber da existência da trienal, então está sempre cheio. Os turistas são na grande maioria asiáticos, especialmente japoneses e coreanos. Por isso essas dicas valem também pós-trienal para quem está indo passear pelo Japão.
Uma das razões do surgimento da Setouchi Triennale foi criar um projeto que trouxesse revitalização e turismo à região, que por anos sofreu com o êxodo da população local. Para trás foram ficando apenas os idosos. A arte foi o caminho encontrado para restaurar a vida nestas ilhas pouco povoadas. Essa renovação começou com Naoshima, em 1989, quando ainda era um repositório ilegal de despejo de resíduos industriais. O Benesse Art Site Naoshima é o responsável pelo projeto, e deu tão certo que criou versões nas ilhas Teshima e Inujima. Hoje são 20 museus e espaços de arte comandados pelo Benesse Art Site, espalhados nas três ilhas.
Ogijima, conhecida como “Cat Island”, onde você encontra gatos em qualquer lugar por onde anda, é também uma das ilhas que foram revitalizadas graças à trienal. Nela moram apenas 200 pessoas e hoje a ilha se movimenta em torno da arte. São 15 obras e/ou instalações existentes lá, sendo 10 remanescentes das outras duas edições do festival. Há até um bistrô francês na ilha, que acomoda apenas vinte clientes por vez, e é comandado por um jovem casal japonês e fica aberto a maior parte do ano. O Centro de Informações da ilha tem projeto de design assinado pelo artista e escultor espanhol Jaume Plensa. Ou seja, o investimento está sendo pesado.
A Setouchi Triennale desde o início envolve toda a comunidade para colaborar com suas edições. E isso é verdadeiro, pois é nítido todo o envolvimento da população no evento. Eles que, na maioria, mal balbuciam palavras em inglês, estão lá para ajudar a achar obras ou mesmo falar sobre elas, mesmo que você não entenda. São velhinhos sorridentes e generosos que te recebem nas instalações espalhadas pelas ilhas. Eles se viram como pode para ajudar e é perceptível a alegria que o festival os traz.
A não ser que você esteja no Japão e zarpando para as ilhas nos próximos dias, essa edição já acabou. Mas daqui três anos tem outra, e sempre é possível fazer um island hopping em outras épocas. Não esqueça disso.
Para quem for à Trienal, o ideal é transitar pelas ilhas através de Uno ou Takamatsu, que são as duas cidades por onde todos chegam quando vão para essa região. A vantagem em ficar em Takamatsu é que de lá saem balsas para quase todas as ilhas, ao contrário de Uno, de onde saem balsas apenas para Naoshima, Teshima e Shodoshima. Dependendo da quantidade de dias que for ficar, vale a pena reservar um pernoite em Naoshima e Shodoshima e circular a partir delas. As obras indoor abrem entre as 9 e 10h da manhã, e fecham as portas antes das 18h. Já as outdoor ficam abertas à visitação a qualquer hora, mas muitas são prejudicadas à noite pela falta de iluminação.
O ideal para transitar nas ilhas é alugar um carro (não esquecer que é necessário ter uma carta internacional), bicicleta elétrica (só pegue uma manual se você encara boas subidas de morros de bike) ou uma lambreta. Esqueça ônibus. Os horários são ruins e atrapalham bastante quem tem planos de se virar com eles. Rodar as ilhas de bike é uma viagem à parte de tão linda que é a paisagem em volta, especialmente Naoshima, onde o passeio é feito pela costa litorânea, que é de cair o queixo de tão bela.
As reservas de hospedagens precisam ser feitas com boa antecedência, pois há mais procura do que oferta, especialmente nas ilhas principais. Vale muito a pena tentar se hospedar uma noite em um dos hotéis do Benesse House, que fica dentro do complexo de museus. É lá que fica a famosa Oval House, que só permite acesso para quem se hospeda no Museu ou na própria Oval House. E o mais incrível é que os hóspedes dos dois podem visitar o museu a qualquer hora do dia ou da noite, já que para eles o complexo fica aberto 24 horas.
Leve dinheiro, pois é difícil conseguir utilizar cartão de crédito na maioria dos lugares, com exceção dos grandes museus.
Viajar de trem é uma das melhores opções no Japão. O trem-bala faz o trajeto em 3h20, o que vale bastante a pena, já que ele sai da Tokyo Station, que fica dentro da cidade. É possível também chegar em Takamatsu ou Uno de avião, que foi como eu cheguei, num voo de 1h30 saindo de Tóquio. O valor fica mais ou menos o mesmo. Também há trens saindo direto de Hiroshima ou Quioto, caso as cidades estejam nos planos.
Eu recomendo usar Takamatsu como base, porque é uma cidade relativamente grande, com muitas opções de restaurantes, cafés e lojas, além de ser moderna. A partir dali, vale sempre a pena pegar as balsas por volta das 8h da manhã, pois assim dá tempo de alugar uma bicicleta e fazer tudo com calma. Atentar sempre para o último horário da balsa para não perdê-la, que costuma ser relativamente cedo. Existem também os barcos-rápidos e eles costumam funcionar até mais tarde, mas custam o dobro do preço e não é útil para quem compra o passe de balsas válido por três dias.
Tem hospedagem tem para todos os bolsos. Quem for ficar em Takamatsu ou Uno, recomendo checar a localização no mapa para se certificar se é próximo aos portos, pois o transporte público local não tem horários tão flexíveis, especialmente nos fins de semana. Táxi é viável, diferentemente de Tóquio.
O passaporte da Trienal custa 5.000 ienes e é válido durante os três períodos do festival (primavera, verão e outono). Os grandes museus, como Chichu Art Museum, Benesse Art Museum e Teshima Art Museum tem descontos de 50% nos valores normais de entrada. Eles custam em média 1.000 ienes com o passaporte e o desconto vale apenas na primeira entrada. Para ver tudo utilizando o passaporte, o gasto será mais ou menos 10.000 ienes, ou seja, US$ 100. Vai valer cada centavinho rico de dólar.
O Chichu Art Museum e Teshima Art Museum são os dois lugares mais disputados, por isso vale a pena comprar com antecedência ingressos para ambos. A diferença de valor da entrada para quem possui o passaporte é reembolsada na entrada dos museus.
Fora da Trienal, paga-se a entrada normal dos museus. A visita a todos os espaços do Benesse Art Site existentes em Teshima, Naoshima e Inujima, custa aproximadamente 15.000 ienes (US$ 150).
O passe de balsa por três dias sem limite de utilização custa 5.000 ienes (US$ 50), mas como para ter a liberdade de usar barco rápido, vale comprar avulso. A passagem custa entre 520 e 1.330 ienes por trecho.
Ficamos numa guesthouse em Takamatsu, mas acabamos decidindo ficar uma noite em Shodoshima, que é a maior ilha. Foi um tiro certo. A ilha é grande, estávamos de ônibus e acabamos terminando de ver tudo que queríamos já à noite, quando não tinha mais barco para retornar à Takamatsu.
A primeira coisa que fizemos ao chegar no aeroporto, foi comprar o guia oficial da trienal que custa cerca de US$ 10 e foi o dinheiro mais bem investido da viagem. Ele faz uma diferença enorme, já que o app do evento ainda tem bastante para melhorar.
Quando nos demos conta de tudo que tinha para ver, decidimos escolher as ilhas que visitaríamos. Acabamos abrindo mão (infelizmente) de Ogijima e Inugima. Tínhamos três dias e decidimos visitar uma ilha por dia: Shodoshima, Teshima e Naoshima.
Pegamos a balsa das 9h e às 10h desembarcamos em Tonosho, o principal porto da ilha. Shodoshima, a segunda maior ilha do Mar Interno de Seto, tem uma população de 30.000 pessoas, e é conhecida como a “Ilha das Oliveiras”, sendo a produtora do melhor azeite de oliva do país. Lá encontram-se o Hotel Olivian, Sun Olive Spa, Olive Youth Hostel e, claro, a Olive Beach. Entre as obras da Trienal, encontramos a “Regent in Olives”, de Hisakazu Shimizu, uma escultura gigante em formato de azeitona, com um topete preto à la Elvis Presley.
Um dos lugares mais deslumbrantes da ilha é, provavelmente, a Angel Road onde, duas vezes por dia, durante a maré baixa, um caminho de areia forma uma estrada, conectando Shodoshima à Ilha Benten. Acredita-se que casais que atravessarem a estrada de mãos dadas nunca irão se separar. Pois bem, eu não fui lá atrás dessa benção, mas pelas fotos, o lugar merece uma visita cronometrada para conhecê-la e manter o amor eterno.
Shodoshima conta com 52 obras espalhadas pela ilha e, mesmo tendo um dia inteiro, não conseguimos ver tudo. As boas vindas à ilha foi com “Gift of the Sun”, de Choi Jeong Hwa, uma escultura grande e dourada de folhas de oliveira, onde se vê o mar através do anel. Nela foram gravadas mensagens de crianças, transmitindo seus sonhos para o futuro.
A primeira área visitada, a península Mito, tem uma conexão muito forte com esculturas e tem apoio da Universidade de Hiroshima desde 2014, o que tem trazido um bom crescimento artístico ao local. A maioria das obras foi criada a partir das histórias da península, da ilha e também dos espaços abandonados por ali encontrados.
Fizemos Mito, uma parte percorrida à pé e outras de carona ou ônibus, atravessando pequenos vilarejos e áreas desabitadas até chegar no “The Secret of Hanasuwajima”, de Kana Kou (Japão). O que mais impressiona ali é o pequeno museu que abriga essa única obra. Você anda por alguns quilômetros no meio do nada e, de repente, se depara com uma estrutura pequena e moderna. Uma escada interna leva até a única sala do local, onde a obra representa Hanasuawajima, uma ilha desabitada localizada nesta península. Um grande painel azul mostra a paisagem da ilha vista de dentro da água. Para vê-la é necessário “entrar” no centro da obra.
Comemos por ali e seguimos numa carona até o fictício parque arqueológico, produzido pela artista japonesa Hiroko Kubo, o “Mt. Dan Archeological Site”. Ela criou figuras tridimensionais gigantescas de animais e fragmentos diversos de objetos e do corpo humano, que foram espalhadas por um vasto campo verde. O tamanho das obras impressiona, mas o que chama atenção é o fato delas estarem onde estão. Enquanto percorríamos cada uma delas, um velhinho local colocava fogo em algo e nos observava. E são essas as pequenas surpresas que acompanham boa parte da jornada da Trienal.
Por ali ainda, entramos no meio das plantações até chegar numa minúscula rua de terra e descobrirmos “Imagination and Insect Cage”, obra de Daisuke Omi, instalada numa antiga fábrica. Grandes e impressionantes esculturas de madeira de insetos preenchem o local. Um senhor muito risonho nos recebeu e nos acompanhou até a porta. Depois ainda arriscou o inglês para descobrir de onde éramos.
Demos uma esticada até a praia para ver o mar de Shodoshima de pertinho. Foi um mágico em que estar no meio de uma vila rústica como aquela, cercada de grandes obras, uma bela praia, impressiona e nos tira um suspiro.
Pegamos uma carona com uma simpática senhora, que sabia exatamente onde queríamos ir. Ela nos deixou quase na ponta da península, onde se concentravam diversas obras. Esta ponta tem apenas duas ruas, algumas casas antigas e caminhos arborizados que levam até a praia ou a um Santuário Budista escondido no fim de um bosque. “Shiomimi-so” é uma grande instalação sonora que se conecta com as ondas do mar. Ela estava sendo pintada quando chegamos, o que nos proporcionou um rápido encontro com as artistas. Ficamos um bom tempo por ali ouvindo o barulho do mar e percorrendo a praia, onde a instalação terminava na areia.
Nessa área, algumas instalações se encontravam dentro de casas abandonadas. Percorremos algumas e então seguimos para outro canto da ilha, Hitoyama. Por lá, o que mais impressionou foi“Voyage through the Void”, de Nobuho Nagazawa, um belo barco azul de led suspenso dentro de um casarão abandonado. Ele fica no centro de um salão escuro com pé direito alto, com uma escadinha lateral. Não resisti. Subi, entrei e deitei no barco, que piscava ao meu redor, enquanto as pessoas me observavam.
Também não há como não se impressionar com “Dream of Olive”, de WangWen Chih, que descobri posteriormente, tem dedos da brasileira Marjorie Yamaguti, que trabalhou na produção. São 4.000 bambus formando uma bela instalação oval aos pés de um campo de arroz. É impressionante! A parte interna remete a um palco. As pessoas entram, sentam e ficam assombradas com o tamanho enquanto observam cada detalhe. Para chegar nela, é necessário atravessar o campo de arroz, onde homens trabalham nas plantações e, às vezes, nos olham curiosos.
Já na região de Obe, a última que visitamos, o meu queixo caiu mesmo foi com as 196 esculturas de crianças em pé colocadas na areia. O número representa crianças perdidas no mar e também países reconhecidos oficialmente pelo governo japonês. Para chegar lá é preciso percorrer vielas estreitas de um bairro residencial. A instalação é desconcertante. Apesar do conceito da obra, ela me trouxe mesmo foi a visão dos refugiados, que tentam alcançar novas terras através do mar. “Beyond the Border”, de Lin Shuen Long, torna-se um pouco assustadora quando a noite cai e a praia fica completamente tomada pela escuridão, tornando as esculturas em pequenos vultos, que parecem te observar.
A nossa despedida de Shodoshima foi com o festival de outono, que se espalhava pelas ruas estreitas e escuras da cidade. Música japonesa, instrumentos e roupas típicas seguiam um dragão decorado com led. A animação preenchia o silêncio da ilha.
Após ler bastante sobre Teshima, impossível não ficar ansiosa em conhecê-la. Seguimos para lá a partir de Shodoshima numa viagem de pouco mais de meia-hora.
Não conseguimos uma bicicleta elétrica, então decidimos que usaríamos ônibus e, o que desse, faríamos a pé. Funcionou, conseguimos rodar praticamente toda a ilha durante o tempo em que ficamos lá. Começamos com um dos momentos mais emocionantes da viagem. O Teshima Art Museum tem apenas uma obra, Matrix (2010), de Rei Naito. O museu, com design assinado por Ryue Nishizawa, é também uma obra de arte e emociona tanto quanto a obra que abriga. Um não se separa do outro. Não à toa foi uma criação feita em conjunto.
O Teshima Art Museum fica também aos pés de um campo de plantação de arroz, que foi restaurado com colaboração dos residentes locais.À frente, o mar. Sua arquitetura remete à uma gota d’água. E é justamente a água que se transforma em arte dentro de suas dependências. A estrutura não tem pilares. É uma concha de concreto com duas aberturas superiores laterais de 40x60m cada uma. A altura máxima do espaço tem 4,5m. De um lado, árvores altas e o céu azul. Do outro, apenas o céu azul sob nossas cabeças. A integração entre natureza, arte e arquitetura é harmônica, indo além da nossa compreensão.
Gotas de água brotam de pequenos furos no chão e escorrem pelo concreto sem nunca se espalhar. Elas podem encontrar outras gotas, mas se juntam e continuam percorrendo o espaço, ora lentamente, ora rapidamente. O barulho contínuo é apenas o da natureza. Lá dentro não é permitido falar e nem mesmo fotografar. Para qualquer lugar que se olha, se vê apenas pessoas boquiabertas com a experiência, que de tão simples, é única e, quase, inexplicável. Alguns deitam, outros sentam, outros tentam percorrer os cantos baixos, onde a acústica permite ouvir conversas feitas em sussurros. Corvos sobrevoam nossas cabeças e seus urros ecoam como se eles estivessem em nossos ombros.
Apenas lágrimas brotam em mim, como as gotas no chão, que vem e vão. Eu rio, eu choro. Eu sento, eu deito, eu ando, eu vou de um lado para o outro. O lugar evoca emoções inexplicáveis. Boquiaberta, não quero ir embora. Quero ficar ali, quietinha, vendo o tempo passar, ouvindo o barulho do vento, ver as nuvens correrem, os pássaros voarem. Não sei quanto tempo ficamos por lá, mas não queríamos ir embora. Estávamos em completo êxtase. Aos poucos nos rendemos e fomos saindo de mansinho, mas não sem dar uma última volta, sentar, deitar, contemplar as gotas da água, que ficam ali eternamente como queríamos ficar.
Aqui vai o texto (em inglês) lido pelo artista Rei Naito, em 2010, ao staff do museu:
“Matrix,
It is always beside us, and everything is born from and nourished by it.
Something what makes life on earth possible and also that observes life on earth – as a vessel.
Through space, as it feels.
Like a vessel that accepts nature as it is
Based on the idea that anything before us is good
Man is reborn moment after moment, newborn each time
Natural vitality is there and here
Somebody other than me is there, living on earth now as I do
Is it a blessing in its own sake to exist on earth?”
Eu só sabia que seria difícil ter outra experiência que superasse essas emoções. Sabia de nada, inocente! Elas são possíveis e estão há apenas algumas horas de espera.
Para tentar recompor a alma, seguimos para o café, que é quase uma miniatura do museu. Lá tem uma pequena loja e o café, onde fizemos um “pequeno” almoço e seguimos, pois ainda tínhamos bastante coisa para ver.
Teshima é uma ilha super charmosa e dona de uma paisagem dramática. Suas ruas estreitas, onde só é possível passear a pé, são emolduradas com casas centenárias e bem cuidadas. A ilha tem uma história que beira 14.000 anos. Hoje, além de manter um solo fértil para a plantação de arroz, é também uma área que faz uma ótima fusão entre arte, arquitetura e gastronomia.
Uma das obras que integram a Trienal é o “Shima Kitchen”, de Ryo Abe, um concorrido restaurante, conecta as pessoas através da comida e da arte. O local foi reconstruído a partir de uma antiga casa para a primeira Setouchi Triennale, em 2010, e ficou por lá desde então. O menu conta apenas com pratos que utilizam frutos do mar e produtos locais. Concorridíssimo, não conseguimos um horário para almoçarmos por lá, mas desfrutamos da sua bela área externa para almoçar um curry comprado numa lojinha ao lado.
Gostei muito de “Storm House”, de Janet Cardiff & George Bures Miller, obra permanente na ilha. Ela fica numa casa bem antiga de teto baixo e chão de tatame. A instalação sonora e visual remete à uma forte tempestade por dez minutos. A sensação causada lá dentro é que realmente o mundo está desabando. Trovões, raios, lâmpadas piscando, barulhos na cozinha, tosse e frio nos abraçam numa experiência de causar arrepios. O realismo causado é similar ao que a dupla nos proporciona em seu galpão, em Inhotim.
Chiharu Shiota me emocionou com seu barco vermelho carregado de memórias na última Bienal de Veneza. E novamente ele trouxe todas as suas lembranças para sua obra “Farther Memory”, uma casa feita a partir de 600 peças arquitetônicas, a maioria janelas, construídas em colaboração com locais. A casa tem um corredor que se estende até o campo de arroz, enquanto na entrada, ele mostra o mar.
A “Teshima Yokoo House”, da artista Yuko Nagayama, impressiona logo na entrada coberta com uma tela vermelha de vidro, espelhando o exterior similar à imagem 3D. A sala principal é bela, mas menos impressionante. Na entrada, essa tela vermelha expõe um jardim japonês aos fundos, que fica desfocado ao ser visto sem óculos adequados. Ao atravessar a entrada, nos deparamos com esse mesmo jardim bem cuidado, onde carpas gigantes nadam no lago, cercado de pedras pintadas de branca e verde limão. O banheiro é outra atração a parte, com paredes espelhadas com reflexos deformados. É uma experiência divertida e também é uma instalação permanente.
Ao lado da Yooko House tem outra casa, outrora abandonada, transformada numa instalação coberta com listras pretas, vermelhas, brancas, algumas amarelas e laranja, do teto ao chão. Móveis de design arrojado e um bar aos fundos, que tem horário de funcionamento. Percorrê-la só descalços, que aliás, é como se percorre a maioria das instalações em todas as ilhas. “Was du liebst, bringt dich auch zum weinen (Japanese franchise version)”, do alemão Tobias Rehberger, é uma divertida e vertiginosa instalação.
A mais esperada, portanto a mais lotada. Deixamos o sábado para ela, mas a primeira recomendação é visitá-la durante a semana, quando é bem mais tranquilo. Em Naoshima a história é antiga, datada do século 12, quando a ilha floresceu como ponto estratégico para a pesca e carga. Apenas no século 20 é que Naoshima conquistou indústrias mais modernas e hoje é, provavelmente, um dos grandes centros mundiais de arte. Alugamos uma bicicleta elétrica e foi a coisa mais legal que fizemos.
Naoshima tem um dos maiores complexos de arte do mundo, contando com o Benesse House Park, Benesse House Museum, Lee Ufan Museum, Chichu Art Museum, Ando Museum, Art House Project, Minamidera, Naoshima Bath, além de casas abandonadas, que foram resgatadas e transformadas em instalações de artes, e obras que se espalham também em meio aos bosques, praias, estradas. É também uma das ilhas mais bonitas, com uma costa litorânea bem cuidada.
Começamos pelo Chichu Art Museum, a 4km do porto onde chegamos. Alcançá-lo mesmo de bicicleta elétrica requereu fôlego. A ilha é cheia de subidas e descidas. O museu é como a vista, te deixa sem ar.
O Chichu Art Museum é o mais importante (e imponente) da ilha. Foi desenhado pelo renomado arquiteto japonês Tadao Ando, e não possui lado exterior. O museu é underground e seu projeto preservou toda a paisagem em volta. É fascinante. Vê-lo como na foto acima não traduz metade do que é andar pelos seus longos corredores de concreto, que interligam todas as salas e jardins.
O projeto do museu foi inspirado na série de obras primas que abriga, Water Lilies, de Claude Monet, uma das mais importantes da carreira final do artista. É o conjunto das quatro obras, Water Lily Pond (1915-26 – 200x300cm cada), Water Lilies, Cluster of Grass (1914-17 – 200x213cm), Water Lilies (1914-17 – 200x200cm) e Water-Lily Pond (1917-19 – 100x200cm), que inspirou a criação do Chichu. A sala onde elas ficam foi pensada milimetricamente em como abrigá-las, para dar ainda mais força às pinturas do que elas já possuem. Uma sala ampla, branca, bem iluminada, pé direito alto, onde 700.000 cubos de mármore Bianco Carrara de 2cm cada, compõem o cenário. Para entrar é necessário deixar os sapatos do lado de fora. Saí de lá ofuscada… aí entendi o banquinho deixado logo na entrada. Senta para recuperar o fôlego, pois vai precisar.
Na época em que o projeto do Chichu foi desenhado, eles escolheram os artistas contemporâneos Walter de Maria e James Turrell, conhecidos como “artistas da terra” pelos trabalhos desenvolvidos no vasto deserto da América, para complementar e prover maior compreensão da magnitude da obra de Monet. Assim como o artista francês, De Maria e Turrell compartilham o mesmo interesse em produzir obras que confrontam a natureza.
Ainda extasiada por Monet, eu segui para a fila que se formava para conhecer a instalação de Turrell. A sala onde aguardávamos é a segunda obra de Turrell, Open Sky, onde há uma abertura quadrada no alto do teto expondo o céu para quem o contempla. A primeira obra fica logo na entrada, um hexágono branco, projetado numa parede azul. Ou uma parede azul projetada num hexágono branco? A primeira ilusão criada por Turrell já é mostrada em Afrum, Pale Blue, que muita gente atravessa quase sem percebê-la.
A terceira, Open Field, era a que nos mantinha na fila. Esperei pacientemente, tirei os sapatos e segui as instruções, acompanhada de um pequeno grupo de pessoas. Entramos em outra sala, onde uma tela de luz rosa (na foto acima ela está azul) atraía nossa atenção. Diante dela uma escada. Ficamos por alguns instantes olhando-a da ponta inferior, até pedirem para que avançássemos os degraus acima. Subimos até alcançar a tela. E então, páh, penetramos a luz e entramos no espaço, onde até então enxergávamos apenas uma parede.
O trabalho de ilusão de luz que Turrell faz é inexplicável. Eu só o conhecia de leituras e fotos, mas ver sua obra e entrar nela foi um soco no meu estômago. Os olhos novamente encheram de lágrimas enquanto eu avançava até o fim do salão escondido por trás daquela tela inexistente. Quando você chega na ponta e olha para trás, outra surpresa. O exterior, de onde você veio, não está mais à mostra (ou está?) e, sim, uma tela alaranjada com uma moldura branca. Fiquei desnorteada. A escada, colocada estrategicamente num altura que não se vê de dentro, desaparece. Todos olhando maravilhados. Retornamos para essa nova tela formada numa ilusão de luz nas nossas costas e a atravessamos novamente até encontrar a escada. Saí de lá tentando compreender a dimensão do trabalho de Turrell. Não resisti, entrei de novo na fila e fui lá me extasiar com Open Field novamente.
Por fim, descemos em direção à sala de Walter de Maria, com suas grandes dimensões. São 24m de profundidade e 10m de largura. Time/Timeless/No Time é uma grande esfera de granito com 2,2m de diâmetro, colocada no centro da sala, no meio das escadas. Acima um retângulo aberto no teto cria sombras brincalhonas no preto da bola, acompanhando você em qualquer lado que se mova. Nas laterais, 27 esculturas de madeiras, cada uma numa forma diferente: triangular, quadrada ou pentagonal. Ali retoma-se o fôlego perdido nas salas anteriores, mas não sem se impressionar com a grandeza de De Maria.
Ainda zonzos percorremos os corredores do museu, os jardins internos, alguns de pedras e outros gramados. Terminamos no café, que também vale a visita, já que seu terraço é o único lugar do museu que possui uma vista exterior. No caso uma panorâmica do litoral. Na saída, já na rua, há o Chichu Garden numa área de 1.043m2, que emula os jardins de Monet. O jardim propicia, durante as estações do ano, vivenciar ao vivo as obras do artista produzidas no último estágio de sua vida.
Foi uma manhã inteira no Chichu Art Museum, lugar para visitar sem pressa. Visitamos algumas outras instalações nos arredores, incluindo o belo jardim de sakuras feito por Tadao Ando, e seguimos para o Benesse House Museum numa boa pedalada morro abaixo, até alcançar o mar. Lá a famosa abóbora amarela, da Yayoi Kusama, enfeita o píer dando boas-vindas aos visitantes que chegam. Que lugar lindo! Praia de areia branca e fina, calçadas arborizadas, jardim repleto de arte, além das construções de museus, spa, hotel, tudo ali reunido. O ar por é outro. É mais praiano, é menos denso. É um momento de encanto e respiro enquanto colocamos a alma no lugar.
O complexo de arte é bem grande e parte dele não foi possível fazer de bicicleta. O sol a pino e a alta umidade nos fez sofrer um pouco para escalar a subida até o Benesse Art Museum, onde museu e hotel se misturam no mesmo edifício. A entrada já é familiar, pois a essa altura já estamos acostumados com o trabalho esplêndido de Tadao Ando. O museu fica no alto de uma colina, propiciando uma vista fenomenal de toda a baía que se forma naquela área de Naoshima. Novos jardins, estruturas de concreto e instalações de arte ficam aos pés da construção se espalhando até um outro píer, que é alcançado por uma escada. O museu tem 3 andares com obras de vários artistas contemporâneos como Basquiat, Keith Haring, Alberto Giacometti, Shinro Ohtake, Christo e Jeanne-Claude, Yves Klein, Cy Twombly, Jasper Johns, Nam June Paie, Frank Stella, Yasumasa Morimura, Richard Prince, Kan Yasuda, Sam Francis, Richard Long entre outros. Foto? Não pode aqui também.
Um pequeno restaurante, acessado apenas por dentro do museu, guarda em suas paredes a série Flowers (1967), de Andy Warhol. Por ali um menu degustação é servido quase como uma obra de arte, que se completa com Warhol te rodeando. É surreal! No andar de cima há uma sala de leitura, onde há diversos livros e rascunhos de projetos feitos por Tadao Ando. Há uma mesa e confortáveis cadeiras para folhear o material utilizado como inspiração para o arquiteto. Há um café bem em frente, onde o serviço simpático propicia uma vista de um outro lado da ilha. É tudo deslumbrante. Nas estreitas fendas entre uma estrutura de concreto e outra percebemos a obra “Weeds”, de Yoshihiro Suda, que quase passa desapercebida.
Abrimos mão do Lee Ufan Museum, que pede uma longa caminhada numa estrada íngreme e o tempo já começava a ficar contra nós. Descemos e no caminho nos deparamos novamente com Walter De Maria, escondido debaixo da escada que leva os visitantes até a praia. Poucos passam por aquele lado e acabam perdendo um último momento com duas novas esferas de granito instalada ali. Dá vontade de passear para o outro lado, mas tivemos que abrir mão.
Seguimos para o lado oposto da ilha, Honmura, o maior vilarejo de todos que visitamos. Lá há uma fusão impressionante do antigo e do novo.
Visitamos o Ando Museum, construído bem em meio à área mais antiga de Naoshima. Em volta dele, templos e casarões centenários. O museu é uma portinha de uma pequena casa centenária também, mas ao entrar você se depara com uma construção de concreto (claro!) e uma pequena timeline e maquete de seus principais projetos arquitetônicos.
O Minamidera, uma casa minimalista de madeira preta, também assinada por Tadao Ando, esconde um tesouro: “Backside of the Moon”, de James Turrell. Saber que terminaríamos nossa visita com o coração bombando emocionado, já causou um arrepio. Conseguimos os últimos ingressos do dia, já que o horário de visita é a cada 15 minutos para um grupo limitado de pessoas e a última entrada é às 16h15. Cada grupo permanece 15 minutos dentro da casa.
Na fila foram dadas instruções de como se comportar ao atravessar a porta de entrada da Minamidera. Silêncio absoluto, atenção e não esquecer de tatear as paredes, pois a escuridão é completa. E, claro, descalços. Não tinha lido nada sobre a instalação, então não sabia o que nos aguardava. Entramos sem ver nenhum ponto de luz. Tateamos até encontrarmos um banco, onde todos os visitantes sentaram. E ali ficamos por cerca de oito minutos olhando para a frente e para o nada. Aos poucos começamos a enxergar um quadro branco retangular. Foi pedido que levantássemos e andássemos em direção a ele. Nesse momento já percebíamos as pessoas à nossa volta e a luz do quadro foi ficando mais intensa. Nada tinha sido alterado desde nossa entrada, era apenas nossos olhos acostumando-se com a escuridão. Simples assim. E magnífico. O arrepio novamente veio nas costas e soube que a longa viagem tinha valido a pena. Que incrível! São tantos adjetivos, que eles me faltam para este texto.
Saímos de lá completamente atônitos com a experiência. Boquiabertos, mal conseguíamos falar. Andamos em volta, visitamos algumas outras instalações, mas estávamos sob efeito de Turrell novamente. Hora de voltar para o porto Miyanoura, que foi alcançado em rápidas e felizes pedaladas.
Ali visitamos as instalações feitas no porto, a Miyanoura Gallery 6, o Naoshima Bath, a abóbora vermelha da Yayoi Kusama, que enfeita o porto e fica ainda mais especial com o sol se pondo atrás dela. Cerrem as cortinas, o espetáculo terminou. Hora de voltar para a realidade, de entrar na balsa, mas não antes de assistir a lua cheia (era full moon) subindo à nossa frente, enquanto o sol deitava-se no horizonte. Sabe quando a arte te eleva num estado de êxtase em que poucas vezes na vida você alcança? Foi exatamente assim que saímos de lá.
Que venha a Setouchi Triennale 2019, porque aqui a felicidade mal cabe nas boas lembranças. Valeu!
*A Setouchi Triennale acontece a cada três anos nas ilhas no Mar Interior de Seto. O festival foi um dos escolhidos para o projeto #fly2fest, patrocinado pela KLM Brasil, que faz parte doSkyTeam e oferece voos para 1.052 destinos em 177 países.
Lalai prometeu aos 15 anos que aos 40 faria sua sonhada viagem à Europa. Aos 24 conseguiu adiantar tal sonho em 16 anos. Desde então pisou 33 vezes em Paris e não pára de contar. Não é uma exímia planejadora de viagens. Gosta mesmo é de anotar o que é imperdível, a partir daí, prefere se perder nas ruas por onde passa e tirar dicas de locais. Hoje coleciona boas histórias, perrengues e cotonetes.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.