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Está visitando Paris e não sabe por onde começar? Comece pelo começo da criação da cidade no Museu Carnavalet.
O delicioso scargot (imagem associada ao desenho dos arrondissements) de Paris te parece um tanto labiríntico? Então, a primeira alternativa é se perder. Andar a esmo tendo como norte apenas a própria fruição e o prazer de contemplar tal e qual um flâneur, o sujeito cujo estado de espírito reflete a subjetividade parisiense e dos poetas como bem o descreveu Baudelaire. A segunda opção pra conhecer Paris vem de um conselho de Marcel Proust: tenha sempre um mapa em mãos. E a terceira (que não exclui as duas primeiras) é fazer uma visita minuciosa ao mais parisiense dos museus, o Museu Carnavalet da história de Paris, da pré história até hoje.
A descoberta já começa desde a arquitetura do prédio, um dos mais antigos do Marais em estilo Renaissance, um pré-Hausmann (o barão responsável por dar a cara da Paris que você conhece in loco ou dos filmes). O museu mais antigo de Paris é muito bem servido no quesito arquitetura, afinal trata-se justamente da história da cidade, de longe uma das belas cidades planejadas do mundo. Notadamente vestida com harmonia e um soberbo bege e cinza, com pequenos traços em terracota das chaminés e estátuas esverdeadas (do bronze oxidado), na linha do tempo do Musée Carnavalet é possível ver também uma Paris anterior e bem diferente.
Por exemplo, ocupando o térreo com a mesma configuração desde a sua inauguração, uma enorme coleção de letreiros exuberantes e nada padronizados, antes dependurados em abundância nas fachadas dos comércios, é possível visualizar uma cidade muito mais colorida e enfeitada que os registros em preto e branco omitiram involuntariamente. Enormes, em ferro ou madeira entalhada, por vezes ricamente pintadas, era como se os prédios bourgeoises do século 19 tivessem brincos barrocos. A maior parte dessas “bijoux” está disponível em conteúdo digital no mesmo salão, numa aula empírica de semiótica da proto-publicidade.
Dividido em três grandes categorias: história, topografia e arte parisiense (em salas de estilos de época), as inúmeras maquetes virtuais e físicas (e até de cortes de quartiers) pontuam as transformações das épocas até o presente que é fruto do processo de embelezamento capitaneado pelo visionário esteta Barão Haussmann. Mas o museu de 140 salas e 13 mil m2 não se detém « apenas » nas nuances das transformações e no impressionante projeto de urbanismo da Paris do século 18 e 19, mas mergulha também nos ínfimos detalhes, dos mais relevantes para a compreensão do planejamento da cidade, como o funcionamento da competente malha de metrô, aos mais pitorescos, como um apreendido sapatinho de fitas de Maria Antonieta, a monarca mais pop de todos os tempos (em parte graças a Sophia Coppola).
O sapato da Cinderella de Versailles que tudo viu, tudo viveu, tudo esqueceu e que acabou por perder a cabeça, é a cereja do gâteau em uma pilha considerável de memorabília. De armas utilizadas nas inúmeras insurreições e comunas à indefectível cama-habitat de Marcel Proust, o escritor que se confunde com a história e o ethos da cidade. E é por esta ligação umbilical com Paris que o autor do extenso – mas incontornável – « Em Busca do Tempo Perdido » ganhou uma exposição no Musée Carnavalet.
Acompanhar a exposição com os olhos atentos é uma verdadeira viagem no tempo e uma metalinguagem. Como um Meia a Noite em Paris de Woody Allen que fosse mais sociológico e literário, ou um Truman Capote da sociedade da Belle Époque. Ali se descobre, entre tantas personalidades marcantes, um portrait de Jean Cocteau, que inspirou o personagem Alphonse em O Caminho de Swann. O incensado dândi e artista versátil era amigo de Proust e foi o responsável por introduzi-lo nos meios da vanguarda artística de soirées feéricas, dos salões da alta burguesia aos inferninhos dos cabarés (onde o pintor Toulouse Lautrec reinou). Sim, a exposição não se limita às passagens mais gloriosas da história do autor francês por excelência, não se furtando de humor. Vai fundo nos relatos biográficos do autor. Da infância pobre passada em um bairro judeu às fichas policiais e notas de jornal que davam conta que o tísico Marcel havia sido preso por « atentando contra o pudor » nas ruas de Paris na companhia de soldados. Situado em pleno Marais, bairro conhecido pela presença maciça da comunidade gay, o museu faz uma piscadela que não passa despercebida.
Além das exposições temporárias, é o acervo permanente que oferece mais chaves de compreensão sobre a Cidade Luz. O Carnavalet recebeu o seu nome da marquesa, musa epistolar e dos saraus mais memoráveis da belle époque, Madame de Sevigné, uma das três damas arquetípicas do imaginário proustiano e que antes habitou o endereço do atual museu. Com pinturas, desenhos, placas, uma grande coleção de móveis (principalmente do XVIIe et XVIIIe) e objetos decorativos pontuais e típicos que pertenceram a moradores ilustres, o museu é completo. De fotografias das indústrias a carvão de Montmartre aos fraques e cartolas do Bois de Boulogne, de pinturas da sempre notívaga Pigalle aos vestígios de uma capela redescoberta durante as escavações da reforma, Paris é um cabinet de curiosidades a céu aberto que o museu tenta encapsular.
Estive na festa de reabertura do Carnavalet, num verão abafado pós reabertura da pandemia com apresentações de música de câmara em diversas salas do museu, rondando como o fantasma no filme Arca Russa de Andrei Sukorov. Um pré-clarinete de madeira tocava uma música misteriosa e os cristais brilhavam como novos. Depois voltei mais duas vezes, e ainda assim estou bem longe de ter visto muito. Recomendo passar o máximo de tempo que puder pra compreender melhor o scargot mais complexo do mundo. Porque tamanha a quantidade de elementos e informação, acho que não dei nem spoiler.
Também aproveite o intervalo para o descanso nos jardins do hôtel particulier no lindinho café Olympe (criado depois da reforma colossal de 3 anos). Pra completar a metalinguagem em torno do scargot, acompanhe o seu chá preferido com uma metáfora: uma madeleine coquillage maison coberta poudre d’éclat. Tem como melhorar? Sim, a visita ao Museu Carnavalet é gratuita e não precisa de reserva prévia. ;)
*Imagem de destaque: Piero Sierra – Flickr
Cursou letras, mas escreve socialmente. Publicou um livro premiado de ensaios sobre Vicente Cecim (APCA 80 e 88), escritor hermético e Jodorowsky da Amazônia. É produtora cultural desde 2004, tendo trabalhado principalmente em projetos da cena musical de Belém (Rádio e TV Cultura do Pará) e Recife (Astronave Iniciativas Culturais). Escreve eventualmente na Folha de SP. Vive há quatro anos em Paris.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.