Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
No início do séc XXI, uma pequena empresa chamada Theranos surgiu em Palo Alto, Califórnia, prometendo revolucionar o mercado bilionário de exames de sangue. Essa startup logo ganhou destaque garantindo que, com o uso de tecnologia de ponta, você nunca mais precisaria encarar uma agulha na vida: bastaria uma gotinha de sangue pra realizar todos os exames de rotina. Seu conselho administrativo incluía nomes de peso como os ex-Secretários de Estado americano George Schultz e Henry Kissinger e o general James Mattis (que depois serviu como Secretário de Defesa no governo Trump). Mais que tudo, quem realmente vendia a empresa era sua fundadora e CEO, Elizabeth Holmes. Bonita, inteligente e articulada, a história de Elizabeth parecia escrita por um coach de empreendedorismo: a garota que aos 19 anos largou a prestigiada Universidade de Stanford para seguir seus instintos e trazer disrupção a um setor estagnado. À frente dessa narrativa, a Theranos logo se tornou um legítimo unicórnio, chegando a ser avaliada em mais de 10 bilhões de dólares, o que fez de Elizabeth a mais jovem bilionária dos EUA. Só havia um problema: era tudo uma enorme fraude.
Toda a história da Theranos é contada no livro Bad Blood: Secrets and Lies in a Silicon Valley Startup (no brasil Bad Blood: Fraude Milionária no Vale do Silício). Escrito por John Carreyrou, repórter do New York Times que foi um dos primeiros a questionar a empresa na grande mídia, o livro é daqueles impossíveis de se largar. Carreyrou mostra como Holmes tinha boas intenções genuínas – no início a empresa realmente empreendeu esforços em desenvolver tecnologia que permitisse tornar suas promessas realidade mas, ao ser confrontada com dificuldades técnicas, teve que escolher entre admitir o fracasso ou dobrar a aposta. Passou, assim, a lançar mão de todas as artimanhas para fazer sua empresa crescer, sem se importar com leis ou ética.
No melhor estilo stranger than fiction, algumas passagens são quase inacreditáveis, ainda que trate de uma história real. Quando os primeiros aparelhos montados pela Theranos se mostraram defeituosos, Holmes simplesmente decidiu pegar partes de outros aparelhos disponíveis comercialmente e colocá-las dentro de caixa de um dos seus. Quando os resultados dos exames se mostraram não confiáveis, a Theranos passou a simplesmente forjá-los. E numa das passagens mais incríveis, quando um órgão do governo americano resolve fazer uma inspeção a um laboratório da Theranos, que poderia ter resultado num embargo à empresa, Holmes engana os inspetores, disfarçando um andar inteiro do laboratório.
A narrativa é cheia de pequenos momentos que poderiam ter mudado toda a história. Em diversos pontos Holmes é confrontada, seja por funcionários, seja por investidores, e bastaria que apenas um caso desses seguisse adiante para que o futuro da empresa ficasse ameaçado. Nesses momentos, entretanto, Holmes sofria uma mudança radical de personalidade, e a líder afável e idealista dava lugar a uma pessoa paranóica e vingativa, que perseguia implacavelmente quem se pusesse em seu caminho. Nisso era muito ajudada e estimulada por seu sócio e amante, Sunny Balwami, que impunha um verdadeiro ambiente de terror nos escritórios da empresa.
O que mais me chamou a atenção na história era a incrível capacidade de Holmes em convencer as pessoas. Descrita como alguém possuidor de um magnetismo animal, e de uma voz profunda e hipnótica (e que muitos acreditam ser forçada), Holmes conseguiu convencer homens públicos com décadas de experiência, bem como CEOs de empresas bilionárias, a confiarem numa pequena empresa recém-fundada e com um produto não testado – estima-se que a Theranos tenha recebido mais de 700 milhões de dólares de investimento ao longo de sua trajetória. Holmes também conseguiu conquistar a confiança e até devoção de seus funcionários, que aguentavam situações vexatórias e constrangedoras por acreditar em sua líder.
A imprensa também tem sua parcela de culpa. Enamorados pela imagem de Holmes e sua bela história de superação, os veículos logo a tornaram uma queridinha da mídia, chegando a estampar a capa de veículos como a Forbes e a Fortune, e logo foi apelidada de novo Steve Jobs, comparação que ela abraçou com gosto, chegando a mudar seu figurino para privilegiar jeans e camisas pretas de gola alta, como o fundador da Apple. Mas foi também a mídia que contribui para sua derradeira derrocada: incitado por uma fonte médica que achava os resultados da Theranos duvidosos, Carreyrou iniciou uma longa reportagem investigativa para o New York Times que eventualmente expôs as entranhas podres da Theranos e fez com que a empresa eventualmente declarasse falência e sua fundadora tenha sido indiciada por fraude.
O julgamento de Holmes e Balwami está em andamento, com penas que podem chegar a 20 anos de prisão. Um desfecho melancólico mas apropriado pra ex-queridinha de Palo Alto, e que não vai compensar o estrago que fez na vida de milhares de pessoas, incluindo os investidores que perderam milhões de dólares, os funcionários que dedicaram anos de suas vidas a uma empresa fraudulenta e a uma chefe abusiva, mas especialmente os inocentes consumidores que confiaram no resultado de exames de sangue forjados e com isso arriscaram a própria saúde.
Paraense radicado em Lisboa. Engenheiro, cozinheiro e cervejeiro, sem ordem específica de preferência. Viajante de vocação.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.