Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Eu confesso que, mesmo sendo um entusiasta de arte na forma que for, sempre tive um certo pé atrás com a escultura. Esse que é um dos meios mais clássicos de expressão artística às vezes pode ser absolutamente impactante, pensando, por exemplo, numa das aranhas da Louise Bourgeois. Mas também pode parecer aquele trabalho de escola meio patético do teu filho no primário. Arte pode ser tudo, para o bem e para o mal. E a escultura amplia bastante esse horizonte. Quando decidi viajar até a pequena Münster, no interior da Alemanha, para ver um evento inteiro dedicado a ela, minha expectativa estava bem baixa. Mas o Skulptur Projekte (projetos de escultura, em alemão) foi como uma voadora no peito dos meus preconceitos.
Eu já tinha explicado aqui a história do evento, que acontece em Münster a cada 10 anos. Resumindo para o que importa, tudo começou quando o artista George Rickey instalou uma dessas esculturas ridículas estranhas no meio da cidade, causando uma bela comoção. Era um poste com três quadrados metálicos presos a uma roldana, que se mexia como um catavento. O impacto artístico dessa peça pode ter sido irrisório, mas o impacto cultural foi enorme. O diretor de um museu da cidade organizou uma série de eventos para instruir a população sobre arte, e a partir daí a cidade abriu seus olhos (e braços) para a expressão artística. Hoje, em cada ano de final 7, Münster transpira arte e hospeda entendidos e diletantes do mundo inteiro.
Agora, se você é daquelas pessoas que começa a bocejar só de pensar em museu, um aviso: o Skulptur Projekte é tudo menos uma exposição qualquer, e nem o mais leigo e preguiçoso visitante vai se entediar por lá. Isso porque o espaço expositivo do evento é simplesmente a cidade inteira, da torre da igreja ao parque municipal, de prédios comerciais a espaços abandonados. O grande trunfo do projeto é estabelecer um diálogo entre a prática da escultura e o ambiente urbano. É colocar a obra em posição ativa dentro da esfera pública, transformando o uso e a relação da população com o espaço urbano.
Os artistas convidados a participar do Skulptur Projekte tem a liberdade de escolher o local que quiserem para suas criações. A maioria das obras é de site-specific, ou seja, são elaborados apenas para aquele lugar e aquele período. E muitas delas trabalham em cima da participação ativa do público, borrando as linhas que diferenciam a escultura da instalação, da performance e do happening. Algumas fazem tanto sucesso, que o governo municipal as compra para fazerem parte da cidade.
É o caso da obra do artista americano nascido na Ucrânia Ilya Kabakov (1997). De longe, ela parece só uma antena com formato peculiar no meio de um parque. Chegando mais perto, percebe-se que entre suas hastes, um fio continuo escreve um texto que só pode ser lido se você se jogar na grama pra olhar para cima. O texto, justamente, te convida a se deixar sobre a terra e olhar para o céu, sem intervenção do entorno. Ali perto, a obra ‘The Lost Reflection’ (2007), da escocesa Susan Philipsz, desconstrói o formato da escultura por ser uma obra feita de som. Embaixo de uma ponte, de hora em hora, sua voz ecoa entre as vigas de sustentação do viaduto com uma música suave. Em outro ponto da cidade, um pátio é desconstruído pelo americano Bruce Nauman, entre o prédio da universidade e o do Centro de Ciências Naturais. A ‘Square Depression’ (1977) é uma pirâmide invertida de concreto que afunda o solo para que a relação dos passantes com o espaço subverta a trivialidade.
As obras da edição de 2017 tem altos e baixos, como não poderia deixar de ser. Algumas delas tem um conceito tão hermético que nós, pessoas comuns, ficamos com aquela famosa cara de paisagem. É o caso da obra ‘Tender Tender‘ do inglês Michael Dean, que ocupou todo o vão central do LWL Museum, o principal da cidade. Outras beiram o absurdo, como na ‘Bye Bye Deutschland‘, da brasileira Barbara Wagner e do alemão Benjamin de Burca. Ela acontece dentro de um inferninho no centro histórico, que continua funcionando durante o evento, mas com entrada gratuita. Lá dentro, a cenografia cheia de neons retrôs é complementada por um telão, onde um casal canta músicas estilo schlager, um tipo de pop cafona dos anos 80 e 90. Gosto de pensar que me faltou referência, mas não pude evitar a cara de paisagem.
Por outro lado, algumas das ‘esculturas’ são tão potentes, que valem por todo o rolê. O francês Pierre Huyghe escolheu para trabalhar um antigo rinque de patinação desativado, um pouco afastado do centro. Lá no enorme ginásio, ele criou a ‘After Alive Ahead‘, um microcosmo pós-apocalíptico onde as forças da natureza batalham pela sobrevivência. Entre morros de argila e concreto, da aridez do solo vemos surgir algas e musgos, uma colmeia de abelhas habita um monte de terra, um crustáceo e um peixe dividem sozinhos um aquário escuro que emite vibrações graves que ecoam por todo o salão. A intervenção orgânico-tecnológica ganha contornos estéticos ainda mais pitorescos pela presença de uma arquibancada, que coloca o visitante como parte observadora de um processo de evolução biológica extremamente lenta.
Do outro lado da cidade, com um espírito muito mais libertador e sensorial, a turca Ayse Eckman usa a arte para alterar funções e processos urbanos, jogando luz sobre coisas que antes passavam desapercebidas. Sua ‘On Water‘ é uma ponte metálica instalada para cruzar um canal por um ponto onde antes nunca houve ligação entre as margens. A sacada é que a ponte foi instalada cerca de 30cm abaixo do nível d’água, forçando os visitantes a molhar os pés para participar, e ao mesmo tempo criar um efeito lúdico e quase etéreo de caminhar sobre as águas. A obra ainda pode ter um viés político, quando pensamos na situação dos refugiados na Europa, muitos dos quais arriscam suas vidas no Mar Mediterrâneo em busca de redenção, estabelecendo uma metáfora entre a ponte e a empatia dos povos europeus.
Outras menos emblemáticas, mas não menos importantes são, por exemplo, os candelabros de velas que criam energia para lâmpadas de LED e iluminam uma passagem subterrânea do alemão Aram Bartholl; a performance-barra-dança da romena Alexandra Pirici, que usa um edifício gótico da prefeitura onde foram assinados tratados de paz que encerraram guerras do século 17 como a parte escultural da obra; a fonte pitoresca da americana Nicole Eisenman, que agrupa figuras humanas ao redor de um espelho d’água, numa ambiguidade ora sexual ora cômica; a construção que simula um santuário litúrgico no meio de um estacionamento da dupla Peles Empire (que ecoa ao trabalho da Adriana Varejão); e as centenas de pôsteres espalhados pela cidade pelo alemão Andreas Bunte, que oferecem por QR Code alguns de seus curtas que apresentam atividades do dia-a-dia como se estivessem sendo observadas através de um microscópio de laboratório.
Só na edição de 2017 são quase 40 obras inéditas, fora as já existentes. É muita coisa para ver. Mas a cidade de Münster parece que foi pensada para oferecer essa ‘caça ao tesouro’ da arte. O sistema de ciclovias é excelente, e o próprio evento tem um sistema de aluguel de bikes. As ruelas da cidade histórica preservada oferecem um pano de fundo cheio de charme para a exploração. E o aplicativo do Skulptur Projekte é um verdadeiro navegador para os novatos, oferecendo mapas completos, e informações sobre artistas e obras. A grande lição de Münster é fazer tornar a arte um agente da transformação urbana, em vez de ser apenas um tesouro para poucos guardado entre quatro paredes. Ali, a população aprendeu que ter a arte no cotidiano faz com que cidade e sociedade trabalhem e evoluam juntos, pois é ela que cria a interface entre a humanidade e o espaço construído. Com certeza, o Brasil teria bastante a aprender por lá.
Quem quiser visitar o Skulptur Projekte Münster tem que correr, pois o evento acaba dia 1 de outubro.
Para o Renato, em qualquer boa viagem você tem que escolher bem as companhias e os mapas. Excelente arrumador de malas, ele vira um halterofilista na volta de todas as suas viagens, pois acha sempre cabe mais algum souvenir. Gosta de guardar como lembrança de cada lugar vídeos, coisas para pendurar nas paredes e histórias de perrengues. Em situações de estresse, sua recomendação é sempre tomar uma cerveja antes de tomar uma decisão importante. Afinal, nada melhor que um bom bar para conhecer a cultura de um lugar.
Ver todos os postsVivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.