Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
No começo de fevereiro, Véronique Jacquet viu sua brasserie simplona ser invadida por uma manada de curiosos que nunca tinha sequer passado pela cidadezinha de Bourges. Logo ela descobriu porquê: no rádio ela ouviu que seu restaurante Le Bouche à Oreille tinha recebido uma celebrada estrela Michelin. Véronique recebeu a notícia com uma risada alta, porque ela sabia que deveria haver algum engano. Sua brasserie, decorada com toalhas plásticas xadrez, tem lugar para apenas 20 pessoas, abre só para o almoço, e serve menus de comida caseira, como o tradicional bouef bourguignon, a 12 euros para operários da cidade. Nada a ver com os ambientes estrelados do guia, com receitas caríssimas, ambientes requintados e chefs renomados por trás do balcão.
Ela estava certa. Menos de uma semana depois, a assessoria do guia anunciou o engano, pedindo desculpas aos dois estabelecimentos. O verdadeiro estrelado é o restaurante Le Bouche à Oreille (boca-a-boca, em tradução livre), que fica na Rue de la Chapelle, em Boutervilliers, perto de Paris, enquanto o de Véronique fica na Route de la Chapelle, a 190km dali. O primeiro é comandado pelo chef Aymeric Dreux, e já tinha uma estrela desde 2015. Lá, o menu completo, com flan de lagosta e miolo de vitela, sai por 48 euros.
O erro saiu apenas no site da Michelin – no guia impresso e no app a informação estava correta – e foi corrigido em poucos dias. Mas a bagunça estava feita. Véronique viu seu seu restaurante encher de caras novas, formar filas de espera, e seus 4 funcionários tiveram que se desdobrar para atender todo mundo. Com a confusão, Aymeric ligou para Véronique, e ambos riram da situação. Mas provavelmente só porque ninguém sofreu prejuízos com o erro.
O Guia Michelin foi criado em 1900, pelos irmãos Ándre e Édouard. Eles criaram a marca de pneus 11 anos antes, e a ideia do guia era justamente fazer as pessoas viajarem mais – e assim gastar mais os pneus para comprar mais. As dicas eram, inicialmente, de hoteis, mecânicos e postos de gasolina, raros naquela época. Foi só no fim da década de 20 que o guia começaria a fazer as resenhas gastronômicas que o fariam tão famoso. Hoje, ganhar uma estrela (ou mais) da instituição é o equivalente a ganhar um Oscar para um ator. A Michelin hoje pode construir celebridades da comida, ou acabar com carreiras longas.
Todo esse poder não viria sem muita controvérsia. Para começo de conversa, muita gente acusa o guia de ser elitista e esnobe, já que só são dadas 2 ou 3 estrelas para estabelecimentos caros, com serviço pomposo e comida ‘conceitual’. Muitos chefs inclusive mudam seus cardápios para criar receitas extravagantes que possam impressionar os juízes anônimos. Realmente, para reles mortais como nós, alguns pratos dos mais reconhecidos restaurantes do mundo parecem piadas de mau-gosto (no pun intended) para nosso estômago classe média.
Outra crítica ao guia é que o frisson causado pelas suas escolhas fez muitos chefs reconhecidos se importarem mais com estrelas do que com a própria comida. O próprio Daniel Boulud, verdadeira celebridade da cozinha em Nova York, recentemente perdeu uma de suas 3 estrelas e atribuiu isso a querer ser consistente e previsível, e voltar às origens de cozinhas de forma mais emocional. Já tem muito chef recusando as estrelas justamente para se afastar da pressão da instituição.
Por último, um dos maiores problemas do Guia Michelin está exatamente no público que invadiu a pequena brasserie da Véronique. Na era da rede social, onde todas as experiências são compartilhadas com todos que nos cercam, o status alcançado pelo registro de um prato estrelado é mais importante que a comida em si, o ambiente da refeição e memória afetiva do momento. Likes valem mais que sabores.
Nos últimos anos, a Michelin passou a olhar com mais carinho para a soul food, aquela que conforta o espírito tanto quanto os olhos, e alguns poucos restaurantes mais modestos foram timidamente condecorados. É o caso do Tsuta, no Japão e, mais recentemente, de duas barracas de mercado em Cingapura que servem pratos de 2 dólares. Quem sabe o próprio Le Bouche à Oreille (o de Bourges) não teria ganho uma estrelinha se os juízes tivessem efetivamente passado por lá. Quando perguntaram à cozinheira do restaurante, Penelope Salmon, se ela achava possível ganhar uma, ela respondeu: “De jeito nenhum! Eu cozinho com o coração.”
*foto do destaque: www.bespokeyachtcharter.com
Para o Renato, em qualquer boa viagem você tem que escolher bem as companhias e os mapas. Excelente arrumador de malas, ele vira um halterofilista na volta de todas as suas viagens, pois acha sempre cabe mais algum souvenir. Gosta de guardar como lembrança de cada lugar vídeos, coisas para pendurar nas paredes e histórias de perrengues. Em situações de estresse, sua recomendação é sempre tomar uma cerveja antes de tomar uma decisão importante. Afinal, nada melhor que um bom bar para conhecer a cultura de um lugar.
Ver todos os postsDeu vontade de ir no restaurante “errado”!
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.