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Imagine um cenário que parece saído de desenhos infantis: uma ilha minúscula, de areia bem branca, com algumas palmeiras no meio e cercada por um mar ofuscante de tão claro. Agora imagine que não se trata apenas de uma ilha solitária, mas sim de um arquipélago com literalmente centenas delas, a imensa maioria desabitada. Imagine ainda que você pode, por um precinho bem camarada, alugar uma ilha dessas inteirinha só para você (e talvez a pessoa amada?). Parece sonho, né? Mas esse lugar existe e fica mais perto do que você imagina: o arquipélago de San Blas, no Panamá, é um segredo caribenho que ainda não entrou no radar da maioria dos brasileiros.
San Blas é uma comarca (equivalente a um estado) do Panamá, com capital na cidade de Porvenir. A comarca engloba uma estreita faixa de terra que começa ao sul do Canal do Panamá e vai até a região de Darién, na fronteira com a Colômbia. Mas a principal atração da comarca não se encontra no continente, e sim incrustada em meio ao mar do Caribe: um imenso arquipélago de mais de 200 quilômetros formado por incontáveis ilhotas. Incontáveis é mesmo a palavra a ser usada, já que ninguém parece saber ao certo o número exato: algumas fontes dizem tratar-se de 365 ilhas, outras de 378, outras mais de 400. Em uma coisa todos parecem concordar: você pode passar pelo menos um ano visitando uma ilha por dia, sem precisar repetir alguma.
O arquipélago tem um grande diferencial em relação a outros destinos turísticos caribenhos: aqui não há resorts, iates, jet skis, boates, nada. Seus habitantes, conhecidos como Kuna, mantém um controle grande sobre as ilhas e nunca permitiram a especulação imobiliária que tomou conta de outros destinos. Isso, obviamente, tem um lado bom e um outro ruim: se, por um lado, as instalações são bastante precárias, para dizer o mínimo – incluindo falta de eletricidade e água encanada na imensa maioria das ilhas – por outro lado, fez com que o arquipélago mantivesse uma autenticidade e uma paz difíceis de encontrar nos nossos tempos caóticos. Em suma: San Blas é roots, bem roots, e, se isso for sua praia, é um verdadeiro paraíso.
Apesar de San Blas englobar tantas ilhas, apenas algumas poucas são efetivamente habitadas. A ocupação humana, infelizmente, não ocorreu da forma mais harmoniosa: algumas dessas ilhas parecem verdadeiras favelas tropicais – um aglomerado de casebres de madeira cobrindo cada centímetro quadrado de areia. Não há saneamento básico: o banheiro oferecido aos visitantes até contém uma privada, mas o “encanamento” dá direto no mar. E isso nas ilhas principais, pois nas menores até água doce para se banhar é um luxo.
Para o transporte entre as ilhas, a canoa é o veículo básico, normalmente movida a remo ou à vela, embora algumas possuam motores de popa. Os Kuna são, de uma maneira geral, muitos comunicativos. As mulheres costumam ser um pouco mais arredias e não gostam muito de ser fotografadas. Então, se quiser registrá-las, não custa nada conversar antes – e não se espante se alguns dólares forem requisitados. Assim como no restante do Panamá, a moeda oficial aqui é o dólar americano.
O arquipélago é habitado por um povo indígena, os Kuna – daí o outro nome pelo qual San Blas é conhecido, Kuna Yala ou Guna Yala, que significa “Terra dos Kuna”. Esse povo, originalmente, habitava as terras do continente, mas fugiu para as ilhas escapando dos espanhóis. Os Kuna são hábeis pescadores e, hoje em dia, muitos também cultivam coco nas ilhas, cujos frutos são levados por barcos para serem vendidos na Colômbia. Mais recentemente, o turismo e a venda de Molas (não, eles não são fornecedores da Volkswagen nem da Ford – mais sobre as Molas adiante) também têm adquirido importância. Durante muito tempo, esse povo, como outros nativos, foi abusado e teve suas práticas culturais reprimidas pelo governo panamenho. Em 1925, porém, os Kuna se revoltaram contra o governo central. Atacaram com sucesso um destacamento policial nas ilhas e conseguiram se fazer ouvir em audiências com representantes do governo. Dessa forma, em 1930, o estado autônomo dos Kuna foi oficialmente reconhecido e, em 1938, Kuna Yala foi estabelecida, com o nome de Comarca de San Blas. Posteriormente ocorreu a promulgação de uma Carta Orgânica e o estabelecimento de uma estrutura governamental própria.
A maior autoridade política da Comarca é o Congresso Geral Kuna, que se reúne duas vezes ao ano, agregando membros de todas as comunidades Kuna. Cada comunidade tem direito a um voto, independente da sua população. Dessa forma, Kuna Yala, apesar de fazer oficialmente parte do Panamá, tem grande autonomia, com um governo independente. Todas essas conquistas fazem com que o povo Kuna seja considerado um exemplo para os povos indígenas do mundo inteiro.
Fisicamente os Kuna chamam a atenção por um detalhe não muito lisonjeiro: sua baixa estatura – são o segundo povo mais baixo do planeta, atrás apenas dos pigmeus africanos. Enquanto os homens se vestem como qualquer indígena no Brasil, ou seja, uma invariável combinação de short-camiseta-boné, as mulheres tem um estilo todo especial: cabelos curtos normalmente cobertos por um lenço, roupas bem coloridas e decoradas com o bordado típico Kuna – as tais Molas que já mencionamos, de cores fortes, com motivos geométricos e de animais marinhos. Além disso, usam uma grande argola de ouro no nariz e tem os antebraços e canelas firmemente enfaixados para que atrofiem, o que é considerado extremamente sexy nessas bandas – algo assim como as chinesas costumavam fazer com seus pés.
Quando crianças, as meninas Kuna não podem usar a argola do nariz e tem os cabelos compridos. Mais do que isso, não tem nome, apenas um apelido “oficial”: somente quando atingem a maturidade, ou seja, quando menstruam pela primeira vez, é que são efetivamente batizadas, tem seus cabelos cortados curtos e podem furar o nariz. É um momento de grande orgulho para a família da menina e, por isso, motivo para uma grande festa, oferecida pela família à comunidade.
O papel feminino na sociedade Kuna tem mais uma peculiaridade: somente as mulheres podem herdar bens. Isso faz com que famílias que só possuem filhos varões escolham um deles para assumir o papel de mulher, com direito às roupas típicas, argola no nariz e tudo o mais. Ou seja: a família escolhe um dos filhos para se travestir de mulher e assim garantir o direito à herança familiar. Esses Kuna são aceitos normalmente pela sociedade, podendo inclusive se casar.
Carro – O acesso a Kuna Yala se dá principalmente através de carros 4×4 que fazem o trajeto entre a capital, Ciudad de Panamá, e a Comarca. A viagem leva cerca de 2 horas. Até onde sei não há opção de transporte público para esse trecho, portanto é necessário alugar um carro na Cidade do Panamá ou contratar os serviços de uma agência de turismo. Por esse serviço, costumam cobrar o 50 dólares.
Chegando ao litoral, você vai ser deixado numa espécie de porto improvisado, sujo e bagunçado. Não se desespere: você está quase chegando. Lá, há várias filas, devidamente identificadas, uma para cada ilha-destino. Basta entrar na fila que lhe interessa e esperar o barco chegar. Esse deslocamento custa entre 10 e 20 dólares e pode levar de 10 minutos a meia hora. Se estiver viajando através de alguma agência, eles normalmente se encarregam de todo o transporte até o destino final.
Barco – Outra opção para se visitar San Blas é pegar um barco em Cartagena, na Colômbia. Vários velejadores fazem essa rota levando turistas. Alguns estão dispostos até a pagar por isso, se você tiver experiência com veleiros e concordar em trabalhar por alguns dias no barco. A maioria, entretanto, vai pedir uma passagem. Muito cuidado é necessário na hora de escolher uma embarcação: há relatos de comandantes beberrões e violentos, e a idéia de passar alguns dias em alto mar com um louco ao timão não é das melhores.
A melhor estratégia aqui é pesquisar bastante na internet e também nos murais de informação do Iate Clube de Cartagena, quando saindo da Colômbia, ou simplesmente perguntar aos Kuna, quando saindo do Panamá. Tenha em mente que essa não é uma boa opção para quem dispõe de pouco tempo: mesmo em alta temporada há poucas saídas por semana, e essas muitas vezes são adiadas por vários dias, em decorrência de mau tempo ou outros imprevistos. Além disso, não é todo mundo que aguenta com tranquilidade uma viagem em alto mar. Mas pode ser uma boa opção logística para quem está pensando em juntar Colômbia e San Blas na mesma viagem. Quem se dispõe a encarar essa aventura ainda ganha um mini-cruzeiro pelo Caribe! A viagem em si costuma levar de 24 a 48 horas, dependendo da velocidade do barco e do tempo. Fora que muitos barcos ainda passam mais um dia ou dois ancorados nas ilhas antes de desembarcar os passageiros – mas novamente, isso varia muito de embarcação para embarcação, portanto o que vale é pesquisar e conversar bem para não se meter numa furada.
Nós chegamos em San Blas a bordo do barco Stahlratte. Esse é um grande veleiro de 70 pés, com casco em ferro fundido e mais de um século navegando os sete mares. A tripulação, de maioria alemã, passa parte do ano velejando pelo Caribe, fazendo inclusive a rota Cartagena/San Blas. Nós éramos um grupo de 12 passageiros, de várias nacionalidades. Passageiros não, tripulantes, porque enquanto o veleiro está navegando todos tem que ajudar, seja preparando o almoço, ajudando a subir e a baixar as velas, ou até mesmo assumindo o timão por algum tempo – e a lembrança de comandar o barco por algumas horas de uma noite linda de verão, somente eu, o mar e as estrelas, é uma das melhores que tenho dessa viagem.
É possível fazer um bate e volta em San Blas a partir da Cidade do Panamá, mas não recomendo essa opção: a viagem de carro mais o trecho de canoa até as ilhas vão fazer com que você passe mais tempo se deslocando do que propriamente aproveitando as ilhas. Entretanto, essa pode ser uma opção para quem não dispõe de mais tempo e não quer perder a oportunidade de se banhar nas águas do Caribe. Para realmente aproveitar o arquipélago e conhecer as principais ilhas, três ou quatro dias são bem mais interessantes.
Carti Yandup é a maior ilha do arquipélago e também a mais habitada. Costuma ser o ponto de chegada dos visitantes, que às vezes passam uma noite lá antes de seguir para as outras ilhas. Em Carti, há uma vendinha onde é possível adquirir alguns itens como biscoitos, refrigerante e cerveja. Lá também há fornecimento de água doce para um banho diário – “mordomia” não necessariamente disponível nas outras ilhas. Passamos uma noite em Carti, mas não gostamos nem um pouco. Nossa cabana ficava ao lado da bodega local e, como era noite de festa (carnaval!), os Kuna estavam todos bêbados e as paredes finas da cabana não eram muito eficientes no quesito isolamento acústico. Além disso, a ilha é totalmente coberta de cabanas, dando a impressão de uma favela marítima, e as praias são “sujas” – relativamente falando, é claro. Se puder, evite pernoitar ali.
As ilhas normalmente possuem uma estrutura mínima para receber os visitantes – ênfase no mínima – que consiste em cabanas de teto de palha e chão de areia batida, onde você pode ocupar uma cama de colchão fino ou uma rede, fornecida pelos Kuna. Os banheiros, compartilhados, são inevitavelmente precários e a água do banho é salobra. Você vai dividir as instalações com os outros visitantes que estiverem na mesma ilha.
Uma outra opção é acampar nas ilhas menores, totalmente desabitadas: caso não tenha levado uma barraca de camping, você pode pegar uma emprestada dos Kuna, ou uma rede para amarrar nas árvores. Se optar por essa hipótese, lembre-se de levar um saco de dormir – aliás, sempre é uma boa levar um saco, independente de onde for ficar. A água para banho e outras necessidades se resume a alguns baldes fornecidos pelos Kuna. Essa é a opção mais roots de hospedagem, mas, por outro lado, oferece o maior grau de privacidade – e você vai poder dizer que, durante alguns dias, realmente teve uma ilha só para você!
Independente da opção de hospedagem, paga-se entre 20 e 30 dólares por pessoa, por dia de estadia. O preço inclui as refeições principais – café da manhã, almoço e jantar. Funciona assim: todo dia, nos horários marcados, um Kuna vai de canoa levar a comida até você. Infelizmente, a gastronomia foi a maior decepção da viagem: as refeições eram muito simples, sempre à base de arroz branco e uma saladinha crua, acompanhado de um pedaço de frango ou peixe fritos. Em uma ocasião, nos serviram até atum… enlatado! Não exatamente o que você esperaria numa ilha no meio do mar. Algumas ilhas tem bares improvisados vendendo cerveja e refrigerantes caros e quentes.
Os mais descolados podem incrementar a dieta comprando frutos do mar direto dos índios: basta acenar para algum pescador que estiver passando. Um churrasco de peixe na areia já alegra o dia de qualquer um, e é possível comprar lagostas por preços bastante acessíveis.
A diária também inclui transporte gratuito para outras ilhas. Basta dizer ao canoeiro qual ilha você deseja visitar, e ele o leva lá, buscando no horário marcado. Dependendo do destino, a viagem pode tomar algum tempo – o arquipélago é bem grande. As canoas não inspiram lá muita confiança: numa das viagens que fizemos simplesmente ficamos sem combustível no meio do caminho, e não havia nenhum remo a bordo. Foram alguns minutos tensos, pois o sol já estava se pondo, e nós sem saber como iríamos sair dali, até que outra canoa passando nos resgatou com alguns litros de gasolina. De qualquer forma, tirando esse incidente, o sistema funciona bem e permite visitar várias ilhas em pouco tempo.
Finalmente, há a opção de ficar na cidade de Porvenir, que faz parte de San Blas, mas fica no continente e possui alguns hotéis e pousadas – nada de muito luxuoso, mas estão lá. Sinceramente, se você faz questão de acomodações menos rústicas, provavelmente San Blas não é a melhor opção.
Há ilhas de todos os tamanhos e para todos os gostos. Apesar disso, apenas algumas costumam ser visitadas por turistas.
Isla Aguja – É a mais próxima ao continente e, por isso mesmo, das mais visitadas. Possui uma boa estrutura turística.
Isla del Diablo e a Isla Perro – Essas duas ilhas ficam bem próximas, sendo possível atravessar a nado de uma para a outra. No meio do caminho, um naufrágio garante horas de diversão se você tiver uma máscara de snorkel – aliás, vale muito a pena levar uma, pois nas ilhas não há onde comprar nem alugar. Em ambas as ilhas, há uma barraquinha vendendo cerveja e refrigerante gelado, e é possível pernoitar nelas.
Cayos Holandeses – Essas ilhas estão mais distantes das comunidades principais dos Kuna e, por isso, recebem menos visitantes. O toque insólito aqui fica pela presença de um grande navio distante no horizonte, encalhado nos corais. Não sei dizer se é porque essas ilhas são menos movimentadas, mas por aqui a vida marinha parecia ainda mais exuberante se comparadas a outras partes do arquipélago.
Foto do destaque: Shutterstock – Simon Dannhauer
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