Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Viajantes do mundo inteiro, de todos os tipos, frequentes ou não, já ouviram dizer daquilo que chamamos de “alma” de um lugar. Pode ser o cheiro de um tempero, o sabor de um prato típico e exótico, as curvas e as cores da arquitetura, a textura dos tecidos, o som das vozes e dos instrumentos, sei lá, mas é como se determinados lugares tivessem essa marca invisível, às vezes inexplicável, que teima em vir à cabeça quando se lembra de cada um deles. Em geral essa alma não está apenas em um desses sentidos, mas em um mosaico de todos eles, em que o tamanho das peças depende de cada viajante e das experiências que ele ou ela teve naquele lugar.
Nova Orleans é uma dessas cidade com alma. Mas vai além disso, já que “alma” ganha um sentido quase literal por lá: Nola é, afinal, considerada a “cidade mais assombrada dos Estados Unidos”. E foi com esse espírito (rá!) que resolvi, assim que a cidade foi escolhida como meu próximo destino, entrar no clima e aproveitar o lado sombrio e macabro de Nova Orleans. Pesquisando por aí, encontrei um tour chamado “5 em 1“, que prometia um gostinho de tudo o que a cidade mais populosa da Louisiana poderia oferecer aos corajosos: fantasmas, vampiros, vudus, lobisomens e os mais picantes escândalos sociais. No fim das contas, acabei descobrindo que Nova Orleans é, de fato, uma das cidades mais fascinantes dos EUA, agradando diferentes tipos de viajantes. Como prometia o tour, Nova Orleans também pode ser considerada “cinco cidades em uma”.
E digo por quê:
Fundada em 1718 por exploradores franceses, Nova Orleans ainda guarda muito da cultura desses primeiros povos. Mas os cajuns, como eram chamados os imigrantes franceses e canadenses que primeiro se estabeleceram na região, encontraram uma boa bagunça por lá.
A cidade é uma verdadeira ilha de terra cercada pelo Rio Mississippi de um lado e por pântanos intermináveis por todos os outros. Grande parte da região está abaixo do nível do mar, sendo até hoje um problema considerável evitar que tudo por ali não acabe inundado. Nova Orleans é toda rodeada por levées, ou seja, um sistema de diques gerenciado pelo departamento de águas e prevenção de inundações da cidade. Tudo muito bem, tudo muito bom, mas o sistema nunca funcionou 100%, e uma prova disso foi o erro cometido em agosto de 2005, quando a cidade foi devastada pelo furacão Katrina. Mais de 1.500 pessoas morreram ou ficaram desaparecidas, com dezenas de milhares de desabrigados. Claro, o furacão teve um pouco de culpa nisso, mas não foi o primeiro (nem o último) a atingir a região. Na época do Katrina, o sistema de controle de águas entrou em colapso, e muitos dizem até hoje ter se tratado de erro humano mesmo, de gente que fugiu da cidade em pânico, achando que o controle dos diques funcionaria sozinho. Enfim.
Se tudo isso parece ruim hoje, dá pra imaginar como eram as coisas em Nova Orleans lá atrás, nos séculos XVIII e XIX. Dizia-se que só um louco aceitaria se assentar por lá, mas há e sempre houve louco para tudo nesse mundo, e foi o que aconteceu. Aos loucos cajuns logo se juntaram outros loucos brancos e homens e mulheres de origem africana (que não eram loucos, tendo sido, em sua maioria, levados até lá à força como escravos). Dessa mistura, surgiu a cultura créole, ou seja, a dos nascidos e criados no Novo Mundo, todos falando francês.
Até hoje, muito do que se vê no tão famoso French Quarter ou na incrível Ave. St. Charles vem da arquitetura créole, com os casarões e suas sacadas. No bairro francês, a rua mais conhecida ainda é a Bourbon St., sempre abarrotada de turistas (e beberrões), de pubs e de lojinhas de souvenires. A vizinha Royal St. atrai mais os fãs da arquitetura, com o casario mais bem preservado e as calçadas menos (mas nem tanto) disputadas. Belezura, mesmo, está nos grandes casarões da Ave. St. Charles: pega-se a linha 9 no fim da Royal St., no sentido Garden City, e acompanha-se a avenida arborizada até o final. Uma curiosidade: entre os bondes de Nova Orleans estaria o tal “bonde chamado Desejo” da peça de Tennessee Williams. Com ele, Blanche DuBois vai da estação central ao bairro de Desire, onde vive sua irmã e onde ela acaba conhecendo o tal do cunhado Stanley.
A arquitetura e a história da região são mesmo atrações imperdíveis pra quem quer conhecer Nova Orleans. Uma boa chance disso está em visitar a série de plantations preservadas, localizadas ao redor da cidade. Uma plantation, por definição, era uma grande fazenda, geralmente com sede única e dedicada a uma atividade agrícola principal (cana-de-açúcar e algodão foram os carros-chefes da região por muito tempo). Do centro da cidade pode-se pegar um tour e conhecer propriedades como as Oak Alley e Evergreen, ambas com alamedas de carvalhos centenários incríveis, que serviram de cenário a filmes como 12 Anos de Escravidão e Forrest Gump, ou como a Laura Plantation e sua sede tipicamente créole, fazenda tocada por gerações e gerações de mulheres.
Nova Orleans recebeu, ao longo do tempo, imigrantes das mais diversas nacionalidades: espanhóis (que invadiram a região em 1763 e chegaram a controlá-la por quase quarenta anos), italianos, alemães etc. Isso deu à região o tom que tem até hoje, o de um verdadeiro caldeirão étnico e cultural, fazendo do estado da Louisiana quase uma “Bahia dos Estados Unidos”. E justamente essa mistura toda leva a nossa “segunda cidade”.
Quer comer bem nos EUA? Bom, um excelente lugar pra isso é Nova Orleans. Tirando toda a festa da Bourbon Street, esse talvez seja o aspecto mais conhecido da cidade pelo restante dos americanos: a fantástica comida sulista, com o temperinho créole. Pra começo de conversa, o povo de Nova Orleans faz sanduíche (e que sanduíche!) com tudo. Tem os chamados PoBoys de qualquer coisa: frango frito, camarão, salsicha de jacaré, creme de lagostim, carne de lagosta, caranguejo empanado e até salsicha normal, mesmo. No French Quarter, como em praticamente toda região central de uma cidade turística, tem bastante restaurante “pega-turistas”, mas nem por isso o viajante deixa de encontrar boas opções de PoBoys (como o Johnny’s PoBoys, bem tradicional, bem roots, bem servido, bem barato; ou o Gene’s PoBoys, em Marigny, ainda mais roots e preferido da Beyoncé, que mandou fechar o estabelecimento uma vez, só pra poder comer seu sanduíche em paz.
Entre os pratos típicos da cidade, destacam-se o gumbo, uma espécie de caldo ou guisado de mariscos com arroz branco e pedaços variados de frutos do mar (em geral, camarão e caranguejo), e o jambalaya, algo como uma paella créole de camarão, frango e lagostim. Também nessa onda de um lugar não necessariamente “bonitinho” mas gostoso, e frequentado pelos locais, há o Coop’s Place, restaurante meio com cara de pub, meio com cara daqueles diners escuros que vemos nos filmes americanos de suspense, em que o cara para no meio da cidadezinha porque o carro quebrou e ele não pode mais seguir viagem, e aí tem de procurar um lugar pra comer, entra nessa bodega local, todo mundo olha pra ele com ares de “quem é esse cara, o que ele quer, quando vai embora”, e… Exageros à parte, tem bastante turista e o pessoal é simpático.
Bom, eu comentei dos PoBoys, né? Mais ou menos nessa pegada, há um lugar bem legal na Frenchmen St., o Dat Dog. A ideia é parecida: salsichas de qualquer coisa (carne apimentada, jacaré, lagostim, pato, porco xis, ípslon, zê) no pão, cobertas com molhos variados. Tudo com fritas honestas uma boa cerveja pra acompanhar.
Depois dessa salgaderia toda, que tal uma sobremesa? Nova Orleans é famosa pelos doces de origem francesa, como os beignets (os mais famosos e turisticamente disputados são os do Café du Monde) e os pralinés (há várias fábricas artesanais espalhadas pelo French Quarter, em especial na Decatur St.). Maaaaaas, se você estiver disposto a sair um pouquinho do bairro francês (bem pouquinho, eu juro, uma caminhadinha pelo bairro do Marigny de 15 minutos por ruazinhas bem bonitas, cheias de casinhas créole típicas e muita gente simpática dizendo bom-dia toda hora), vale uma visita ao café Who Dat. O café em si é gostoso, o que nem sempre é fácil de se encontrar em uma viagem aos EUA, mas as tortas e os doces são incríveis. O staff é bem simpático e descoladinho.
Se topou a caminhada pros lados do Marigny, continue um pouquinho mais e vá ao Mercado St. Roch. O lugar abriu recentemente, e lá você vai encontrar comidas bem gostosas, inclusive pra trazer de volta pro Brasil. Na verdade, é um galpão não muito grande, climatizado (dependendo da época, isso é importante por lá, acredite), com barraquinhas vendendo os mais diversos tipos de comidas da região. É uma boa opção pra quem quer escapar do mais tradicionalmente turístico French Market, no bairro francês.
E depois de encher a barriga de salsicha de jacaré, passemos à “terceira cidade” de Nova Orleans.
Se você é carnívoro, foi a Nova Orleans e tem um mínimo de tolerância a comidas exóticas, você experimentou a tal da salsicha de jacaré. Parece um pouco estranho, mas vale lembrar que ao redor da cidade é praticamente só pântano e água. Logo, faz sentido os caras curtirem frutos do mar e um jacarezinho de vez em quando.
Pois bem, uma outra perspectiva viajante possível para Nova Orleans é justamente conhecer os pântanos da região. Sendo às margens do Mississipi e não tão longe do Golfo do México, a região também apresenta uma boa área de mangues, relativamente bem preservados. Com o tempo curto, acaba valendo a pena encaixar um passeio mais turístico quando já se estiver fora da cidade, fazendo a visita às plantations, por exemplo. Uma opção conhecida é o Cajun Pride: pega-se um barco para uma voltinha pelos bayous – braços do rio, em que a navegação é mais tranquila –, vendo jacarés, aves, vegetação típica, um ou outro cemitério escondido. Se você tiver sorte, vai cair com o capitão Tom e escutar histórias de todos os tipos. (Olha, inglês nível hard, aqui. A primeira língua dele é o francês créole, então o negócio é brabo até pra alguns americanos. Para se ter uma ideia, vale assistir à animação A princesa e o sapo e prestar atenção ao inglês do vagalume. O filme, aliás, é um ótimo retrato de quase tudo que se pode encontrar em Nova Orleans.)
E se fizemos o passeio pelo braço do rio, por que não no rio em si? O rio aqui, claro, é o Mississippi. Fundamental ao desenvolvimento da cidade de Nova Orleans, bem como de praticamente toda a parte central dos Estados Unidos, o Mississippi proporciona vistas incríveis, disponíveis também em mirantes a partir do French Quarter. Há passeios turísticos saindo do bairro francês em um dos famosos barcos a vapor, alguns até com jantar e música ao vivo a bordo. Um bom passeio para a noite de Nova Orleans, sem dúvida…
Mas, falando em noite e música, chega-se à quarta e uma das mais importantes “cidades” de Nova Orleans.
Achou que eu fosse esquecer? Não, não. Não dá pra falar de Nova Orleans sem falar no jazz. Da mistura entre as diversas etnias que fundaram a cidade de Nova Orleans veio esse estilo musical, ele também um gênero misto entre clássico e popular, entre técnica apurada e improvisação. Das antigas bandas de rua da cidade, formadas para as celebrações típicas dos católicos franceses, como o Mardi Gras, saíam os instrumentistas que se reuniam na noite da cidade, tocando nos bares do bairro francês. Alguns seguiam as partituras, outros nem tanto, e o improviso acabou virando marca fundamental do gênero. A cidade é o berço do jazz, e até hoje funciona como um bom celeiro de bandas e artistas, exportando depois pro restante do país e do mundo. Em cada esquina (sério), em cada bar, em cada restaurante de Nova Orleans há alguma banda tocando ao vivo, ou pelo menos uma boa referência à parte musical da “alma” da cidade.
Dá pra ficar de olho nas apresentações de grandes nomes da música, que volta e meia dão as caras por lá, mas mesmo as bandinhas de rua são de cair o queixo. Há alguns anos, o eixo musical acabou se deslocando um pouco da Bourbon St. – que ainda mantém muitos bares com música ao vivo, mas com o foco bem mais na festa que no som – para uma rua já no bairro do Marigny: a Frenchmen St. É pra lá que seguem os turistas e os locais quando querem ouvir um bom som, tomando seus bons drinques. Um lugar em especial que merece ser visitado é o Snug Harbor, e vale a pena checar a agenda de shows do lugar antes de viajar (é bom reservar). Esquemas gratuitos não faltam: em praticamente toda portinha que você entrar na Frenchmen St. haverá uma banda interessante tocando. Um exemplo disso é o Maison, com uma programação de três bandas por dia. Basta entrar, comprar uma cerveja e curtir uma boa música.
Na cidade corre uma lenda a respeito de como o jazz se solidificou definitivamente como gênero musical não apenas tipicamente orleniano, mas americano. Tenta entrar no clima: imagine a noite nessa cidade que já tinha, há pelo menos dois séculos e meio, a fama de sobrenatural, repleta de ruas estreitas e casarões antigos, coberta pela névoa densa que vinha dos pântanos ao redor, tomados pelos jacarés e outras feras muito mais perigosas… Nas primeiras décadas do século XX, uma onda de assassinatos em série assolou a cidade. O assassino (assumindo-se que era apenas um, de fato) arrombava a porta dos fundos das casas de suas vítimas e invariavelmente matava toda a família a golpes de machado. O Homem do Machado de Nova Orleans, como ficou conhecido, virou o pesadelo dos habitantes da região e a dor de cabeça da polícia do condado. O assassino nunca foi descoberto, e muitas e muitas teorias a seu respeito foram levantadas. Ainda que hoje se vejam muitos indícios de que os crimes estavam relacionados à máfia italiana, que na época se estabelecera na parte leste do bairro francês e dominava um esquema de extorsão dos comerciantes da cidade em troca de “proteção” (a maioria das vítimas era de origem italiana, comerciantes), muita gente achou e ainda acha que se tratava de um espírito maligno, ou até mesmo da encarnação do demônio, trazendo o terror aos infiéis de Nova Orleans.
Mas o que raios esses assassinatos têm a ver com a definição do jazz como patrimônio da cidade de Nova Orleans? Até mais ou menos essa época, o jazz era tido como um gênero marginal, limitado a bordéis e outros estabelecimento de fama duvidosa. Havia até uma ou outra proibição rolando, imposta por cidadãos preocupados com a “lei, a ordem e os bons costumes da família orleniana” (sei…). Eis que, em 1919, a polícia de Nova Orleans recebe uma carta misteriosa, cujo remetente era ninguém mais, ninguém menos que… o Homem do Machado! Sim, ele mesmo, a aparição mais famosa e mais temida daquele tempo. Na carta, o assassino se apresentava definitivamente como um espírito do mal e, entre outras coisas, dizia mais ou menos o seguinte:
Sem dúvida, você cidadão orleniano deve pensar em mim como um assassino terrível, o que de fato sou, mas a verdade é que eu poderia ser muito pior, se assim o quisesse. Se fosse esse meu desejo, eu poderia fazer uma visita a sua bela cidade a cada noite, todas as noites. Sem muito esforço, eu poderia matar milhares de seus mais nobres cidadãos, pois tenho estreita relação com o Anjo da Morte em pessoa.
Então, para ser exato, às 12h15 (hora terrena) da próxima noite de terça-feira, eu passarei por Nova Orleans. Na minha infinita misericórdia, porém, farei uma proposta a todos vocês. Aqui está:
Aprecio bastante o jazz, e juro por todos os demônios, de todas as regiões inferiores, que cada pessoa dessa cidade será poupada, desde que haja, em sua casa e no horário a que acabei de me referir, uma banda de jazz tocando em pleno swing. Se todos estiverem com uma banda de jazz, bem, melhor para vocês. Mas uma coisa é certa: aqueles entre vocês que não estiverem ao som de jazz na terça-feira à noite (se houver quem o faça) sentirão a ira de meu machado.
Dá pra imaginar a reação da cidade, né? Aquela deve ter sido uma terça-feira bastante animada.
E é com essa lenda que chegamos à “quinta cidade” de Nova Orleans, voltando, finalmente, à vocação fantasmagórica da cidade mais assombrada dos EUA.
Na época da colonização de Nova Orleans, a taxa de mortalidade (como era de se esperar em uma ilha de terra cercada de jacarés por todos os lados) era altíssima, e é impressionante a quantidade de cemitérios, oficiais e clandestinos, que ainda hoje há por lá. Praticamente todo estabelecimento da cidade tem sua história de terror particular: a amante créole rejeitada pelo nobre francês que morreu congelada no teto da casa dele, à espera de um amor que nunca lhe seria retribuído; o pobre coitado que teve as tripas arrancadas ao descer da sacada de sua amada, fugindo do sogro furioso; a linda dama que se enforcou no quintal da taverna, em desespero pelo marujo amado que nunca voltou para buscá-la (pensando bem, há algo em Nova Orleans que parece ainda mais perigoso que os pântanos, os jacarés ou a ameaça iminente de inundações: apaixonar-se por alguém)… Pairam sobre a região boatos de criaturas terríveis, como o rougarou (corruptela do francês “loup-garou”, ou lobisomem), ou vampiros, muitos e muitos vampiros. Aliás, Nova Orleans é praticamente a capital mundial da nação vampiresca. E parece que há motivo pra isso.
No início da colonização francesa, Nova Orleans funcionava basicamente como local de despejo dos “cidadãos mais ilustres do reino”: os condenados, os bandidos, os marginalizados, enfim, tudo o que os franceses não queriam perto deles. A grande maioria desses primeiros colonizadores era de homens, enviados à América como mão-de-obra para a construção e a defesa da nova colônia. Com a alta taxa de mortalidade, a demanda de novos braços não era suprida pela quantidade de malandros que a França conseguia mandar pra lá. Bom, quem sabe “produzir” novos colonos lá mesmo, nas terras da futura Louisiana? Para isso, eram necessárias mulheres, é claro, e os colonos fizeram uma petição às autoridades francesas, exigindo que indivíduos do sexo feminino fossem enviados à cidade. E foi o que o governo fez: criou um convento em Nova Orleans. Dá pra imaginar que isso não resolveu muito a situação da população masculina local, que em pouco tempo entrou com novo pedido junto às autoridades competentes.
E, dessa vez, elas atenderam. Mulheres, em sua maioria camponesas, foram enviadas “compulsoriamente” a Nova Orleans.
Vamos lá, tentando entrar no clima de novo: uma cidade repleta de ruas estreitas e cantos sombrios, coberta pela névoa densa que vinha dos pântanos ao redor e blá-blá-blá. Eis que, numa noite, atracaram navios no porto da cidade. Deles, descem mulheres belíssimas (veja bem quais eram os padrões da cidade na época), pálidas por conta de uma viagem longa e difícil. Cada uma delas trazia consigo um caixão de madeira, o que poderia poupar um bom trabalho aos colonos, considerando a alta taxa de mortalidade de Nova Orleans. Sinceramente? Até eu pensaria que se tratava de um clube de vampiras, ou algo parecido. A comunidade de vampiros é, até hoje, bastante ativa na cidade. A escritora Anne Rice, que é de Nova Orleans e ambientou boa parte de seus romances (como o Entrevista com o vampiro) por lá, contribuiu bastante para alimentar a fama de polo vampiresco mundial que a região tem. O filme inspirado no romance, aliás, não foi a única obra de terror a ser filmada ali, seja na cidade de Nova Orleans ou nos arredores da Louisiana. Alguns outros exemplos: A Chave Mestra (2005), Rua Cloverfield, 10 (2016), O Último Exorcismo (2011), além de séries como True Blood e American Horror Story, que dedicou a terceira temporada inteira (Coven, 2013) a algumas das histórias mais conhecidas da região.
Em AHS, Kathy Bates interpreta uma das mais famosas figuras do imaginário de horror de Nova Orleans: madame Delphine Lalaurie. Nascida no final do século XVIII, Lalaurie era uma dama da sociedade, casada três vezes – e todos os maridos morreram de formas “misteriosas”. Era dona de um belo casarão no bairro francês, no número 1140 da Royal St., onde costumava promover as melhores e mais luxuosas festas da época. Mas por trás dessas festas suntuosas estava, segundo dizem, uma das mais sádicas e terríveis figuras que a cidade assombrada já viu. Já se sabia que Lalaurie não era a melhor das patroas, tendo ela se envolvido com a polícia por maus tratos exagerados a seus escravos. Porém, certa noite, quando um incêndio tomou a mansão e as autoridades locais foram obrigadas a entrar, na esperança de salvar os servos e os escravos da família, o cenário que encontraram por lá daria inveja a qualquer diretor de filmes macabros e de terror. Lalaurie mantinha em seu sótão uma espécie de “câmara de tortura”, em que não somente castigava seus escravos com crueldade, mas também, segundo relatos, fazia experimentos bizarros com eles. A internet está cheia desses relatos e, obviamente, já se perdeu a linha entre o que é lenda e o que de fato aconteceu na mansão dos horrores.
Outra personagem de AHS, sem dúvida uma das mais famosas e celebradas em Nova Orleans, é a rainha do vudu, Marie Laveau, interpretada na série por Angela Bassett. Venerada até hoje por alguns seguidores da religião, mas principalmente por turistas e curiosos, Marie Laveau era considerada uma das praticantes mais poderosas da religião vudu, que tem muitos paralelos com nossas religiões de matriz africana do lado de cá, como o candomblé. Seu túmulo, no cemitério de St. Louis No. 1, é centro de peregrinação e parada quase obrigatória para quem visita Nova Orleans. Na verdade, era: a igreja católica restringiu o acesso a ele de 2015 pra cá, como forma de prevenir atos de vandalismo, já que um dos rumores a respeito da rainha dos vudus era que ela concederia um desejo a cada um que riscasse um X em seu túmulo (depois de realizado o desejo, o solicitante deveria retornar a Nova Orleans e circular o X). Relíquias e pequenos souvenires de vudu estão espalhados por toda a cidade, indo de bonequinhos para a prática de magia negra a incensos, mandingas e patas de jacaré pra “fechar o corpo”, mas há também lugares em que o turista pode encontrar verdadeiros seguidores da religião (e, quem sabe, ler a sorte nas cartas?).
É isso: entre a magia dos vudus e a dos temperos da cozinha créole, tem uma Nova Orleans pra cada tipo de turista. E talvez o mais interessante seja justamente a descoberta de uma nova cidade, uma diferente daquela que você, como turista, esperava. Gosta de histórias de terror? Perca-se nas noites de jazz da Frenchmen St. Gosta de se aventurar na culinária típica do lugar? Conheça as incríveis plantations da Lousiana, carregadas de história e beleza. Uma coisa é certa: Nova Orleans não vai decepcionar você.
*Foto de capa: Jason Mrachina
Mateus, se pudesse, vivia viajando. Gosta de planejar cada viagem nos mínimos detalhes, só pra chegar lá e fazer tudo de outro jeito. Quando conhece um lugar diferente – ou quando volta a um destino preferido –, adora descobrir novos cantinhos pra comer e beber bem, palavras incríveis nas línguas mais diversas e os melhores lugares pra se encantar com as belezas desse mundo. É editor, tradutor e leitor.
Ver todos os postsPassei quase dois meses nessa cidade sombria e pantanosa e realmente, é cheia de atrativos, com uma arquitetura singular. A cultura do Jazz é respirada pelas pessoas nas ruas, praças…valeu a pena passear por NOLA.
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.