Segunda parte
Acordamos às 9h da manhã. “Preciso sair para o trabalho”, disse Ehab, implicando que eu e Samuel (o americano que dividia o quarto conosco) também precisaríamos sair. Em uma decisão rápida, juntamos um punhado de pertences em uma mochila — celular, câmera, caderno de anotações — e poucos minutos depois estávamos em uma van para Nablus, uma das maiores cidades da Cisjordânia.
Não é difícil viajar de um ponto a outro na Palestina. Quando os ônibus não chegam até o seu destino final, é fácil encontrar táxis compartilhados (vans, na maioria das vezes) por preços módicos. O custo vai de 4 a 20 shekels (de R$3,50 a R$18, aproximadamente), dependendo do motorista e da distância percorrida. Não há muito luxo, como pode-se esperar de um país que passa e sempre passou por circunstâncias bastante difíceis: ar condicionado é um artigo raro e as chances de uma massa de ar quente estar saindo do motor do veículo direto para a sua batata da perna são altas. Para encontrar quem pode levá-lo até o seu destino, basta perguntar no terminal de ônibus da cidade. Alguém sempre vai ficar bem contente em encaminhá-lo até o motorista certo, sem custo adicional.
Quando descemos em Nablus, um guia turístico foi rápido e incisivo em nos abordar. “O que vocês querem saber sobre a cidade?”, ele perguntou, enquanto nos pegava pela mão e começava um tour sem consentimento. Sabíamos entre pouco e nada sobre Nablus e, por isso, nos pareceu uma boa ideia continuar o percurso com Hassanein.
Foi com Samuel e Hassanein que visitei meu primeiro campo de refugiados na Palestina. A só quatro quilômetros do centro de Nablus, o Campo de Balata é o maior da Cirsjodânia e um dos mais bem constituídos no território: os refugiados podem encontrar escolas, farmácias, hospitais e um centro cultural, tudo criado pelas Nações Unidas. Hassanein mora no campo e denuncia que a situação está cada vez menos confortável, com a diminuição progressiva no orçamento para remédios e médicos nos últimos anos.
Balata foi estabelecido como um campo de refugiados pelas Nações Unidas em 1950. O propósito era oferecer uma nova residência para os refugiados de Jaffa, cidade árabe conquistada por Israel durante a Guerra árabe-israelense no ano anterior. Os antigos moradores tiveram que trocar a vida na cidade litorânea pelo clima seco de Nablus. Na época, os refugiados eram alocados em barracas provisórias que serviam mais como um abrigo para chuvas do que como um lar. Nos últimos 65 anos, muita coisa mudou em Balata: as tendas foram substituídas por casas de concreto, ainda precárias, e os caminhos improvisados viraram estreitas ruas de terra batida ou asfalto. Apesar da mudança de cenário, os palestinos ainda se recusam a aceitar Balata como uma morada definitiva: a maior parte dos seus 30 mil habitantes enfatiza que aqui ainda é um campo provisório. Mesmo as gerações mais jovens, nascidas e criadas nos limites de Balata, se orgulham em dizer que são de Jaffa, Akko ou Haifa, cidades que hoje pertencem à Israel. Entre suas cidades de origem e seus abrigos atuais, existe uma muralha cinco vezes maior que o Muro de Berlim, com 780 quilômetros de concreto e arames farpados.
Ainda hoje, as casas de Balata continuam se expandido. Pequenos espaços se transformaram em prédios de dois ou três andares para abrigar mais pessoas, entre amigos e familiares. As reformas são visivelmente precárias e, quando possível, transformam o primeiro andar da propriedade em algum tipo de comércio para que a família tenha uma fonte de renda — as escolhas são principalmente salões de beleza, oficinas de carro e mini-mercados. Nas paredes, cartazes e faixas levam o rosto de mártires e prisioneiros de guerra, desde homens-bomba até membros do Hamas, o grupo guerrilheiro de maior proeminência em Nablus. Mais de uma vez, Hassanein chama a nossa atenção para as homenagens: “veja como eles empunham suas armas com louvor, clamando pelo sangue dos inimigos”.
Os cartazes chocam mais pela idade dos homenageados do que pela violência explícita. Quase todos os retratos parecem ser de menores de idade. Alguns também desejam boas-vindas para soldados recém-libertados de prisões israelenses, mas a maioria é em memória de irmãos e filhos que morreram em conflito.
Hassanein fala um inglês claro, mas com sotaque — cômico, geralmente — e, considerando o volume da sua voz, eu não descartaria a possibilidade de um certo nível de surdez. Na maioria das vezes, eu e Samuel passamos despercebidos pelas ruas da Palestina: somos morenos, usamos barba e estávamos castigados pelo sol, o que garantiu um certo nível de camuflagem. Ao lado do nosso guia, porém, é difícil se esconder, já que as explicações em inglês sobre a invasão otomana do século XIX ecoaram por toda a rua.
Não precisamos de muito tempo para descobrir que ser um estrangeiro na Palestina é quase como ser um Beatle em qualquer outro lugar do mundo. Os vendedores saem de suas lojas para nos dar as boas-vindas, as crianças apertam as nossas mãos e tentam começar uma conversa com o pouco inglês que sabem (“what’s your name?”, “where are you from?”), as senhoras interrompem suas compras no mercado para observar nosso diálogo, mesmo que não consigam entendê-lo.
No fim da tarde, descobrimos que, a poucos quilômetros de Nablus, existe um rio que corta o norte da Cisjordânia. O calor era tremendo — a sensação térmica chegava aos 40 graus Celsius habituais do verão no Oriente Médio — e encerrar o dia com um mergulho nos pareceu apropriado. Depois de uma viagem de van que nos custou menos de R$ 5, chegamos a um vale com uma das vistas mais impressionantes que encontramos até então. Em poucos minutos, o asfalto empoeirado e os prédios de concreto deram lugar para uma vegetação que desafiava a falta de verde da cidade. Oliveiras e pinheiros suntuosos se intercalavam com arbustos mais tímidos, amarelados, que não pareciam sobreviver ao verão. O rio, por sua vez, não era tão empolgante: “todo o esgoto da Cisjordânia passa por aqui”, nos disse um dos poucos palestinos que encontramos no caminho (e que, coincidentemente, falava inglês como um nativo) em uma frase hiperbólica, espero. Seguindo uma caminhada por uma estrada mal conservada, após virar à direita em um campo de oliveiras e à esquerda na árvore onde um jumento descansava, avistamos um oásis com rodas gigantes coloridas, escorregas com muitos metros de altura e água, muita água.
Na entrada para a piscina olímpica, nos perguntaram de onde éramos e qual era a nossa religião. Samuel é americano e judeu, o que não facilita as coisas. Depois de nos declararmos católicos (ainda tenho dúvida se o melhor caminho é mentir ou assumir meu ateísmo. O que será melhor no Estado Islâmico?), os funcionários pediram nossos passaportes em um procedimento nada padrão para piscinas públicas. Eles queriam ter certeza que não éramos israelenses.
As mulheres muçulmanas ficam do lado de fora da piscina, em um tipo de pátio com pequenas banheiras para os pés e canelas. Os homens vão para a água, alternando-se entre mergulhos e banhos de sol. Quando descobrem que somos estrangeiros, os adolescentes passam o resto da tarde nos cercando: eles querem falar sobre futebol, jogar vôlei, e nos fazer perguntas que raramente são inteligíveis. Do outro lado da piscina, o salva-vidas grita algo em árabe (pelo desfecho, provavelmente pede para os meninos nos deixarem um pouco). “Ei, Alex, nada um pouco pra gente ver!”, ele pede poucos minutos depois. Nossas bolsas ficam guardadas na secretaria do clube, privilégio que outros clientes não tem.
Em um jantar na minha segunda noite em Ramallah conheci Thawra, uma estudante de direito que fala com paixão sobre a guerra na Palestina. Ela usa uma camiseta da faculdade de Belém e maquiagem escura, entre o roxo e o preto, para realçar os olhos. Aos 28 anos, ela tem uma beleza misteriosa, consequência de uma família multiétnica — seus genes vêm da Síria, Egito e Arábia Saudita, se me recordo bem. Assim como no Brasil, a miscigenação foi parte fundamental na formação do povo palestino e é visível na pele, nos olhos e cabelos da população.