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Auvers-sur-Oise, a esquina da França onde Van Gogh e De Gaulle se encontram

Quem escreveu

Karina Jucá

Data

16 de March, 2022

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A pequena Auvers-sur-Oise, a pouco mais de 30km de Paris, carrega o peso da história em suas construções, imortalizadas nas pinturas e no túmulo do pintor Van Gogh e na residência de campo do ex-presidente Charles de Gaulle.

Ah, se alguns túmulos falassem… Um túmulo específico do Cemitério do Père-Lachaise, onde jaz Jim Morrison, que o diga. O ícone da contracultura que ainda em vida transformou a própria morte em performance estaria satisfeito com a legião que o visita todos os anos em Paris. Visitar mausoléus, cemitérios e lápides não faz parte apenas do programa turístico de admiradores e fanáticos de artistas e personalidades, mas da história da civilização – desde as misteriosas e imponentes pirâmides até as lápides mais mundanas como a dos heróis de maio de 68 Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre no Cemitério de Montparnasse, um bloco de pedra sem monumentos, mas coberto de dezenas de marcas de batom vermelho.

Na França, outro finado ilustre que arrasta uma turba de românticos em busca de seus traços é Vincent Van Gogh, o turbulento pintor holandês que terminou os seus dias na província francesa, mais especificamente em Auvers-sur-Oise, uma pequena vila a 30 km de Paris, mergulhada no parque natural de Vexin e aparentemente fora do tempo capitalista, ou seja, no melhor entre os dois mundos. Se você não é exatamente um(a) fã do personagem Van Gogh, convido a mudar de ideia lendo o compilado das cartas a Theo, ou assistir os filmes Van Gogh (1991), No Portal da Eternidade (2018) ou A Paixão de Van Gogh (2017), o primeiro desenho animado criado a partir de imagens a óleo adaptadas das telas lisérgicas do artista. 

Auvers-sur-Oise, a 30km de Paris - foto: Karina Jucá
Auvers-sur-Oise, a 30km de Paris – foto: Karina Jucá

Uma vez em Paris, uma esticadinha a Auvers-sur-Oise é mergulhar no tempo e espaço em que os valores eram mais importantes que as cifras, que a essência era mais importante que o glamour, que a natureza era anímica e não apartada do homem. Que ser visionário era uma condenação e um dom e não um blefe de modismos. Solitário, contemplativo da natureza e absorto no seu ofício ético de pintar o essencial a despeito da falta de reconhecimento, da consequente miséria e iminente loucura, Van Gogh se converteu em herói outsider anticapitalista, uma espécie de santo secular.

Hiper sensível e epiléptico (os traços concêntricos das suas pinceladas são padrões presentes nessa condição), e com pensamentos demasiado “pagãos” para as crenças da época, foi internado em um sanatório de Saint Rémy, mas “libertado” e enterrado em Auvers-sur-Oise, ao lado de Theo, seu irmão e fiel escudeiro. Seus últimos meses foram vividos e pintados ali, no período que foi considerado o mais fértil e frenético da sua vida, com um número cabalístico qualquer entre 70 e 77 telas hipnóticas.

Os túmulos de Vincent e seu irmão Theo, em Auvers-sur-Oise - foto Karina Jucá
Os túmulos de Vincent e seu irmão Theo, em Auvers-sur-Oise – foto Karina Jucá

O quadro mais famoso pintado no período foi, supostamente, o Campo de Trigos com Corvos, sobre o qual escreveu: “Então – uma vez de volta ao trabalho – o pincel, no entanto, quase caindo de minhas mãos e – sabendo claramente o que eu queria, pintei mais três telas grandes desde então. Eles são imensos trechos de campos de trigo sob céus turbulentos, e fiz com o objetivo de tentar expressar tristeza e solidão extrema. Vocês verão isso em breve, espero – pois espero trazê-los em Paris o mais rápido possível , já que quase acredito que essas telas vão te dizer o que não posso dizer em palavras, o que considero saudável e fortificante sobre o campo”. 

Para quem quer ter miragens e ver alguns destes quadros vivos, é possível adentrar floresta e campos de trigo ou o próprio quarto de Van Gogh tal e qual ele o deixou. Ha alguns anos a pousada onde Vincent morou foi restaurada depois de uma história tão romanesca quanto a vida do pintor dos girassóis. Depois de sofrer um acidente de carro na estrada da vila e internado por dias, o atual dono do Albergue Ravoux foi assaltado pela aparição – ou pelo feeling comercial – de resgatar a memória daquele homem singular e então espaço abandonado. Hoje é possível visitar o seu quarto estreito e modesto perfeitamente reconstituído onde se aspira(va) epifanias.

Notre Dame d'Auvers, imortalizada nas pinturas de Van Gogh - foto: Karina Jucá
Notre Dame d’Auvers, imortalizada nas pinturas de Van Gogh – foto: Karina Jucá

Mas para um elo mais profundo com a França, outro b&b é incontornável. Van Gogh foi o personagem mais marcante a pisar nesta pequena vila, mas não foi o único. Além de outros pintores como Cézanne e Pissaro, o herói da pátria Charles De Gaulle – que está para a França como Winston Churchill está para a Grã Bretanha – tem suas raízes ali. A sóbria propriedade da família, antes espaço de encontro de artistas, virou uma pousada administrada pelo bisneto de De Gaulle, Laurent, biógrafo que publicou um livro sobre a fé cristã do general.

Não é preciso ser especialista para perceber que o senso religioso do vulto político parece coerente pela maneira como o neto vive, sem luxos, preparando tortas de ruibarbo para hóspedes tão específicos, aqueles que seguem os rastros do gênio que profetizou: “Tenho uma fé absoluta na arte”. No mínimo curioso que De Gaulle e Van Gogh se encontrem indiretamente nessa esquina perdida da França, Chez Jules & Léonie, imortalizados entre a grandiosidade dos seus feitos e surpreendente simplicidade dos seus meios, na ética e na estética.

Residência familiar de De Gaulle - foto Karina Jucá
Residência familiar de De Gaulle – foto Karina Jucá

Quem escreveu

Karina Jucá

Data

16 de March, 2022

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Karina Jucá

Cursou letras, mas escreve socialmente. Publicou um livro premiado de ensaios sobre Vicente Cecim (APCA 80 e 88), escritor hermético e Jodorowsky da Amazônia. É produtora cultural desde 2004, tendo trabalhado principalmente em projetos da cena musical de Belém (Rádio e TV Cultura do Pará) e Recife (Astronave Iniciativas Culturais). Escreve eventualmente na Folha de SP. Vive há quatro anos em Paris.

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