Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Eu nunca fui uma pessoa do forró, apesar de este ser um estilo familiar ao norte do país, onde cresci. No entanto, sempre fui uma admiradora incondicional da cultura popular brasileira. Foi com esse espírito desbravador, coração aberto e muita curiosidade que, depois de mais de 5 horas numa viagem total contemplativa, cheguei em Altinópolis para meu primeiro Festival Forró da Lua Cheia.
De cara, confesso que fiquei impressionada com o acolhimento local e com a organização do evento. Do Hotel Pousada Vila das Palemiras até a Fazenda Florada, sorrisos de boas-vindas, tudo no horário, toda uma equipe trabalhando como uma engrenagem para entregar o que posso afirmar ter sido uma das melhores experiências que eu tive até agora.
Das 23 atrações do dia 1, que incluíram shows interessantes, cheios de reflexões e apelos por igualdade em diversos sentidos – como o Braza e Chavala no palco lago – nada se compara ao que eu considero ter sido o real pontapé primeiro dia: Ilú Oba de Min convida Elza Soares.
Ao mesmo tempo resgatando e renovando a tradição do candomblé, e ao combinar maracatu, boi, ciranda, afoxé, o jongo e outras sonoridades, Ilú Oba conseguiu por meio de muito carisma e talento incentivar o empoderamento da mulher através da arte. Com um espetáculo sonoro e corporal, quase folclórico, o grupo atingiu com sucesso o objetivo de erguer e balançar a bandeira do combate ao racismo, à discriminação e muitos outros preconceitos. Isso apenas com os batuques e tambores entoados por mulheres.
Como se não bastasse isso, Elza entra no palco ecoando: “a mulher de dentro de mim cansou desse tempo”. Acredito que nada poderia ser mais representativo e icônico do que a combinação de Ilú Oba de Min e Elza Soares, cuja história de carreira e de vida superou as limitações da idade e do tempo, transpassando contextos e se consolidando como símbolo de uma raça e luta, especialmente ao dizer com muita propriedade que “nosso país é nosso lugar de fala”.
O primeiro dia do Festival Forró da Lua Cheia, cujo público foi de 7 mil pessoas, em minha humilde opinião, entrou pra história da cultura brasileira por entregar e consolidar o que eu enxergo como uma demonstração nata de resistência.
No segundo dia, percebi que o festival proporciona um conjunto de experiências com intervenções diversas, oficinas criativas e workshops. Um compartilhamento que envolveu o coletivo e o individual, se dividindo em dia e noite, com espaço para todos os gêneros, classes e interesses. Uma sutil demonstração de que podemos sim viver em harmonia, não apesar, mas acima e independente das distinções que permeiam nossa sociedade.
Famílias espalhadas pela grama, barracas por toda parte, espaços compartilhados, músicas para todas as gerações em ambientes separados, mas que juntos compuseram uma linearidade de ser e estar em conjunto. Iniciativas como esta, num cenário de disputa e divergências como o que vivemos atualmente devem ser reconhecidas, reforçadas e, sem dúvida, aplaudidas.
Não esquecendo do line-up, no dia 2, com Ponto de Equilíbrio flutuando entre todas as vertentes de representatividade da banda, bem como Planet Hemp indo muito além da apologia à maconha no Palco Vale, o show da banda Samuca e a Selva juntou uma multidão no Palco Lago e fez todo mundo bailar junto.
No entanto, esse dia eu parei mesmo foi para ouvir forró e confesso que fiquei maravilhada com o som da Bando de Regia, escolhida para a competição que rolava no Palco Busca Vida, no qual as bandas se inscreviam e uma curadoria selecionava 15 atrações competindo em várias categorias.
E não foi à toa que a Bando de Regia chamou a atenção com um estilo que ao mesmo tempo mantinha a tradição do forró e inovava em vocal poderoso. Foi assim que a vocalista Kelly Marques levou os prêmios de Revelação Feminina e Melhor Intérprete. Representatividade no forró? Temos também!
O que dizer sobre esse dia? Foi exatamente no terceiro dia que percebi que o Forró da Lua Cheia ia, de fato, muito além do forró. Apesar da não equidade de gênero no line-up, os nomes escolhidos para representar o feminino nesse festival foram mais que assertivos. Nesse sentido preciso destacar dois deles: Ekena e Xênia França, cuja combinação com Ilú Oba e Elza do dia 1 consagrou a presença e a força da mulher.
Sem falar no rapper, escritor e compositor Djonga, que sacudiu a plateia mostrando bem a que veio, levantando sua bandeira contra o racismo e o classicismo. E coroando o dia com a apresentação de Ney Matogrosso, que entrou no palco dizendo: “eu quero é botar meu bloco na rua” – música muito relevante não só no atual cenário político, como também uma mensagem subliminar que reforça toda sua performance e energia.
Não consigo deixar de lado o que, na minha visão, realmente fez valer o Festival. Para isso preciso falar de Ekena, subindo no palco e agradecendo mais uma das três apresentações que somava ao longo da história do Forró da Lua Cheia, mostrando em cada fala toda maturidade e verdade da sua música. “Eu aprendi a me amar”, dizia ela em “Xxota”, uma prova do quem vem por aí no disco novo com previsão de lançamento até 2020.
Ela, antes de encerrar o show com o hino feminista “Todxs Putxs”, pediu licença aos homens para o momento das mulheres, em um convite à igualdade, mas com respeito ao tempo “que é nosso”, como ela disse embalada ao som de gritos, aplausos e lágrimas dos fãs.
Xênia não fez nada diferente, mas foi além. Não acredito que seja possível descrever o que foi essa apresentação, mas me arrisco a tentar. Abrindo com o sucesso “Pra que me chamas?” em um espetáculo de sons e projeções, a cantora e compositora baiana fala de apropriação, empoderamento e transmutação ao longo de todo show.
Dizendo coisas como “a arte é uma entidade” e explicando que sua arte é uma ferramenta de comunicação com aqueles que querem, mais do que música, espaço para evoluir no pensamento e no ser, Xênia convidou milhares de pessoas a se juntarem a ela na 5ª dimensão, deixando “o Brasil lá fora” para criar ali um tempo – espaço do agora de uma nova consciência, da verdade, da alegria e do equilíbrio.
A ancestralidade, a presença, a sutileza da fala de Xênia, a tradição explícita em interpretações, tais como “Deixa a gira girar” e “Respeitem meus cabelos, brancos” foi, sem dúvida, a definição da transversalidade que a música contemporânea brasileira atingiu nessa geração.
Em uma outra esfera, não menos relevante, não posso deixar enfatizar o som de Vivi Seixas, que teve um espaço eletrônico criado para exibir – com louvor e muita originalidade seu trabalho como DJ, carreira que começou na Austrália em 1998. Vivi enlouqueceu geral no Palco Piscina, mixando no deep house sucessos de Raul Seixas, tais como “Sociedade Alternativa”. Definitivamente um upgrade no DNA da transgressão musical do pai para o tempo presente.
Para fechar o festival, a sonoridade e autenticidade de Chico César, que colaborou intuitivamente com tudo que havia sido mostrado ao longo daqueles quatro dias. Chico entregou sucessos como “Pensar em você” e “À primeira vista”, mas foi muito além na música e no discurso, falando sobre questões de gênero, raça e amor. Chico César fez o público levantar uma nuvem de poeira dançando forró, fechando o dia com “Mamãe Oxum”, o que só reforçou todo apelo, tradição e lugar de fala ocupados naquele palco.
A curadoria desse festival, sob orientação de Edgar Meirelles – um homem simples, visionário e empreendedor – e sob o comando de Tiago Panela – produtor que aceitou o desafio de ampliar a experiência do festival – enxergou na diversidade a oportunidade de criar uma atmosfera unificada, fato que promoveu um alinhamento de discurso e energia e fez com que este forró fugisse dos padrões convencionais de festival.
Em última análise, em contraponto ao que a definição da palavra forró com a qual começo esse texto diz, o Festival Forró da Lua Cheia é mesmo um baile, mas de gente extraordinária. Uma verdadeira celebração da cultura brasileira, que traz em si um novo conceito para o que se diz popular. Foi mesmo como se a Fazenda Florada fosse um lugar à parte, uma outra dimensão, aquela da experiência coletiva real e do engajamento genuíno naquilo que deixa de ser causa para ser fato.
Apesar de tudo, de toda incerteza, arbitrariedade e insegurança, estamos SIM vivendo um novo tempo. O tempo em que mulher e homem, natureza, juntos, formam uma intersecção capaz de ressignificar o conceito de cultura para sobreviver e transcender esse cenário. Isso se utilizando, não só das mais diversas artes como ferramenta essencial, mas de um novo mindset que essa mesma intersecção está ajudando a criar.
E assim me despeço dessa memória, parafraseando vários artistas que passaram por ali: Vida longa ao Festival Forró da Lua Cheia. Que não vejamos como apenas uma nomenclatura, mas como uma cultura sobre a cultura que finalmente se renova.
Que venha a edição #30anos!
*Foto do destaque: Festival Forró da Lua Cheia – Divulgação
Jornalista por formação e Produtora Cultural por propósito. Direto da Amazônia, Ana viaja o Brasil trabalhando em shows, festivais e pesquisas. Focada em desbravar sons, costumes, sabores e experiências, é assim que ela pretende dar a volta ao mundo: aprendendo novas músicas e conhecendo novas culturas. Acredita que o sentido da vida é a troca. Pensadora profissional e escritora amadora, ela anda por aí capturando momentos únicos, revelando belezas essenciais e compartilhando tudo isso escrevendo aqui.
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Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.