Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Lorenza Böttner, nascida Ernst Lorenz Böttner, é uma artista chilena de ascendência alemã, que perdeu os dois braços depois de receber um choque elétrico. Depois de recusar o rótulo de ‘deficiente’ e o uso de braços prostéticos, ela se dedicou ao balé clássico, ao jazz, ao sapateado, e aprendeu a pintar com a boca e os pés. Seus trabalhos incluem pinturas-performances com temas de forte teor político, design de roupas sem mangas, e séries de fotografias registrando o processo de transição de gênero. Sua obra era uma eterna batalha contra a opressão da sociedade contra o indivíduo ‘anormal’. Com a arte, ela evocava o direito à capacitação, subjetificação e sexualidade de seu corpo transgênero sem braços. O trabalho de Lorenza Böttner foi, com certeza, um dos mais impactantes da Documenta 14, que acaba no próximo dia 17.
Eu contei um pouco da história da Documenta aqui. Resumidamente, a Documenta é um dos maiores e mais importantes eventos de arte contemporânea do mundo, que acontece a cada 5 anos na pequena Kassel, no interior da Alemanha. Ali, por 100 dias, o trabalho de centenas de artistas de vários países é reunido em diversos espaços para apresentar um panorama da arte mundial, e coletar diversos pontos de vista a cerca de um ou mais temas centrais de relevância global.
Visitar a Documenta não é uma tarefa fácil. Principiantes como eu podem penar para entender algo de muitas obras, porque ali a arte é tratada com absoluta liberdade dentro de todas as possibilidades e meios possíveis. E tudo, sem excessão, é carregado de conceito e simbolismo, mesmo que muita coisa não seja acessível ao público médio. A pergunta que assombra boa parte das obras é: ‘Mas isso é arte?’ Sim, tem muita coisa estranha, bizarra, desagradável e às vezes repugnante. Mas ver tanta coisa, e tanta gente, envolvida em um evento dessa proporção é uma escola. Entender arte vira um treino constante. Apenas vê-la ou apreciá-la não é suficiente.
Essa experiência de Kassel oferece um contraste abismal com os recentes acontecimentos em uma exposição cancelada prematuramente em Porto Alegre. Aqui no Brasil, um movimento político usa motivos torpes e o discurso de ódio para colocar a população contra o poder transformador da arte. Não existe a busca pela conceituação da manifestação artística, e por consequência, não existe debate. Na Documenta, a arte está a serviço da total liberdade de expressão, mesmo tratando dos mais espinhudos assuntos. Todas as vozes são ouvidas, e a censura não passa nem na porta.
Um bom exemplo é a principal (e mais instagramada) obra de todo o evento. O ‘Parthenon of Books’, da argentina Marta Minujín, ocupa toda a praça central de Kassel, bem em frente aos principais prédios que abrigam a Documenta. Impossível não passar por ele. A obra foi feita originalmente em 1983 em Buenos Aires, logo após o fim do regime militar do país. Uma réplica do Parthenon de Atenas foi construída com mais de 100 mil livros proibidos ou censurados pelo governo, simbolizando a estética e os ideais políticos da primeira democracia do mundo. Em Kassel, o Parthenon foi reconstruído exatamente onde os nazistas queimavam os livros censurados até a queda de Hitler. Se nos anos 80 a artista dava um grito de libertação, hoje sua instalação suplica a que não esqueçamos os erros do passado em nome de uma sociedade mais justa, igualitária e empática.
Não por coincidência, o tema da Documenta 14 era ‘Aprendendo com Atenas’. A capital grega surge como peça-chave no entendimento do mundo atual por ter sido berço de princípios determinantes da nossa sociedade como a democracia e a filosofia, e também por hoje ser palco de algumas dos maiores conflitos globais como o colapso financeiro do bloco europeu e a crise dos refugiados.
O artista curdo Hiwa K., por exemplo, empilhou tubos de concreto usados em sistemas de esgoto e os decorou como cômodos de uma casa. Sua inspiração é sua própria experiência ao fugir no norte do Iraque a pé nos anos 90, sem dinheiro para pagar por qualquer tipo de abrigo. Entender sua história muda completamente o envolvimento que se tem com a instalação.
Já o artista e compositor mexicano Guillermo Galindo usou o imenso pé direito do Documenta Halle para fazer flutuar enormes destroços de barcos retirados de naufrágios na ilha de Lesbos, na Grécia, transformando-os em instrumentos musicais que foram realmente tocados em performances durante o evento. Guiado pela ideia das civilizações meso-americanas de que instrumentos são talismãs para o trânsito entre mundos, ele oferece uma parte de sua cultura como meio de redenção para os milhares de refugiados mortos no Mediterrâneo.
Algumas obras causam confusão. O Friedericianum – um dos primeiros museus públicos do mundo, e um dos principais prédios a abrigar a Documenta – recebeu em sua torre do romeno Daniel Knorr uma máquina de fumaça. Na teoria, a obra ‘Movimento de Expiração’ simboliza a fumaça como meio de comunicação. Na prática, um monte de gente ligou para a polícia para avisar que havia um incêndio. A interação dos visitantes com algumas obras ficou tão complexa, que a polícia teve que ser instruída sobre elas para poderem passar a informação a diante.
Mas o mais interessante é que muitas obras na Documenta oferecem esses insights ao lado das obras, o que torna a vivência delas muito mais rica. Um caso que me intrigou muito foi de duas obras vizinhas, com poucas explicações. De um lado da parede, um óleo sobre tela primoroso de Dimitris Tzamouranis mostrava as ondas de um mar revoltoso. Bela técnica, bela imagem, e só. A sua volta, várias pessoas se espremiam para olhar mais de perto as pinceladas, ou para tirar uma foto com celular. Do outro lado, uma elaborada instalação de Janine Antoni que misturava a Odisséia de Ulisses, uma máquina de encefalograma e um detalhado trabalho de bordado capturava apenas alguns poucos curiosos. O impacto imagético se sobrepõe ao conceitual, mesmo na Alemanha.
Aquela cena é um retrato da experiência de arte que esvaziou o discurso da mostra ‘Queermuseu‘, e acabou por ceifá-la. O entendimento da arte – de novo, mais que a apreciação – depende de se abrir para o que o artista se propõe, e não só nos limitarmos à nossa resposta emocional a ela. Talvez a Documenta, com seus textos explicativos ao lado de cada obra, e seus policiais-monitores, seja um caminho para ampliar os horizontes do público brasileiro.
Num país onde se mata uma pessoa a cada 25 horas por homofobia, a arte poderia ser uma interface de diálogo, um campo de tréguas onde podemos celebrar as diferenças. Fico pensando como seria recebido o trabalho da Lorenza Böttner, com suas deformidades, seu não-conformismo e seu erotismo exagerado. Se na Alemanha ela foi celebrada, mesmo que postumamente, penso que no Brasil ela poderia ser infelizmente calada, castrada e relegada aos porões da sociedade. Só porque não tivemos a oportunidade entendê-la.
*Foto do destaque: Estação Central de Kassel – Renato Salles
Para o Renato, em qualquer boa viagem você tem que escolher bem as companhias e os mapas. Excelente arrumador de malas, ele vira um halterofilista na volta de todas as suas viagens, pois acha sempre cabe mais algum souvenir. Gosta de guardar como lembrança de cada lugar vídeos, coisas para pendurar nas paredes e histórias de perrengues. Em situações de estresse, sua recomendação é sempre tomar uma cerveja antes de tomar uma decisão importante. Afinal, nada melhor que um bom bar para conhecer a cultura de um lugar.
Ver todos os postsMuito bom esse seu escrito sobre a Documenta14. Eu estive lá, foi a minha 3ª Documenta. É realmente impactante ver tudo aquilo. A pessoa pode até não gostar, pois algumas obras transbordam dor, violência e tristeza, como aquela cabana, no Fridericianum, do artista Emily Jacir. Memorial para 418 povoados palestinos destruídos, despovoados e ocupados por Israel em 1948-2000. Não há como ficar impassível.
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.