Os diferentes caminhos de Santiago

Se você estiver pensando em encarar o Caminho de Santiago, vai encontrar mil e um relatos online, com as mais diversas experiências, todas levando ao mesmo destino: Santiago de Compostela.

Tem gente que entra nessa por um motivo religioso, porque quer aproveitar as centenas de quilômetros para repensar os caminhos anteriores e futuros da vida e/ou planejam férias diferentes, com uma grande história para contar. Durante a pesquisa prévia, você irá encontrar gente falando que o Caminho Francês é o completo e o correto a ser tomado, que é preciso ter uma motivação pessoal muito forte para a viagem fazer sentido, além de outras “regras de viagem” sendo ditadas. Na verdade, uma das poucas regras certeiras é: prepare-se fisicamente e faça tudo de acordo com o seu tempo. O que vai acontecer na sua viagem e o que você vai encontrar por lá, apenas a vivência real dessa situação vai ser capaz de lhe mostrar. Conversei com duas pessoas que fizeram o Caminho de Santiago por motivos completamente distintos, mostrando que os Caminhos de Santiago devem ser escritos no plural, porque existem os Caminhos Aragonês, Francês, Português e outros a serem percorridos. A experiência do Caminho de Santiago é pessoal, intransferível e cheia de descobertas inesperadas.

“Precisava de um período longe de tudo, repensar a vida, e me impor um desafio”

Foto: Shutterstock.com
Foto: Shutterstock.com

Essa foi a motivação do Marcio Caparica, editor do site Lado Bi. Em 2004, ele decidiu fazer o caminho após um término de relacionamento bastante dolorido. Depois de conversar com uma amiga e ouvir experiências cheias de altos e baixos, ele decidiu encarar o desafio para abrir novos caminhos na sua vida e também para colocar os pés na Europa pela primeira vez.

Durante os 700 quilômetros percorridos em 25 dias, Marcio teve bastante tempo para refletir, refletir mais uma vez, regurgitar o que tinha refletido anteriormente e ainda mais. A dor do término do relacionamento não foi curada ali instantaneamente, mas conseguiu clarear muitas coisas na sua cabeça. 
 
Da parte prática da viagem, o desafio maior foi encarar as tendinites. “Tive uma em cada pé, com uma semana entre elas. Caminhar com dor não é nada bom. Mas foi durante essas tendinites que inesperadamente recebi ajuda de terceiros e aprendi que existe uma bondade fundamental nas pessoas.”
A solidariedade encontrada pelo caminho é algo que você vai ler e escutar bastante quando mergulhar no mundo do Caminho de Santiago. Apesar disso, Marcio também encontrou gente com vibes dissonantes pelo percurso. “Conheci no Caminho uma americana que era super neurótica com segurança, caminhava com um spray de pimenta no bolso e achava que podia ser atacada a cada curva. Eu não me senti ameaçado em nenhum momento – e me desvencilhei dela em poucos dias, porque ela estava acabando com a vibe do meu caminho”, comenta Márcio.
O ponto negativo da viagem de Márcio foi, apesar de estar em um país conhecido pela gastronomia, a qualidade da comida. Sua dieta durante esses dias foi baseada em pão com queijo, já que o orçamento da viagem era bem curto. Por outro lado, ele conheceu pessoas de todas as partes do mundo, encarou novas realidades, ouviu várias histórias e motivos que fizeram com que aquelas pessoas também estivessem ali, vivendo aquele desafio. “O poder espiritual da jornada vem das pessoas tão diversas que constroem essa energia passo a passo”, diz.

O que ficou dessa aventura? “Depois de caminhar 700 Km em 25 dias, aprendi que sou capaz de fazer QUALQUER COISA que dependa apenas de mim, se eu me concentrar nesse propósito. Isso me foi muito útil dali para frente e é até hoje – depois dessa viagem fui estudar na Inglaterra por um ano e meio, tomei conta da minha carreira, larguei tudo para atravessar os Estados Unidos de costa a costa, e agora persevero num projeto de blog que já ajuda muita gente. Tenho certeza de que farei o Caminho mais uma ou duas vezes na vida, para recarregar essa capacidade de cumprir uma meta que essa aventura me deu há 12 anos.”

“A solidariedade das pessoas pode ser gigantesca”

Caminho de Santiago. Foto: Mario Cales / Shutterstock.com
Caminho de Santiago. Foto: Mario Cales / Shutterstock.com

Do outro lado do espectro está Andreu Bastos, autor do blog In and Out Barcelona. Esse luso-catalão fez o caminho em 2000, quando tinha 18 anos e seu motivo era bem mundano: curtir as férias de verão com os amigos.

Em 10 dias, Andreu percorreu o mínimo possível para poder obter sua Compostela, o certificado que os peregrinos obtêm depois de percorrer o caminho.  O mínimo são 100 quilômetros para quem vai à pé ou 200 quilômetros para quem faz o caminho de bicicleta.

“Meu objetivo era me divertir com meus amigos durante as férias de verão, ver as paisagens da Galícia e conhecer bastante gente. Apesar disso, éramos bastante sérios em relação ao objetivo final, que era chegar até Santiago sim ou sim”, comenta. “Para nós, não fazia sentido colocar tanto esforço em uma viagem e desistir no meio do caminho. Ninguém quer largar o Caminho de Santiago pela metade. Apesar disso, vi gente desistindo, pegando o trem e indo para Santiago para ver como era a chegada final”.

Mesmo caminhando uma média de 10 quilômetros por dia, Andreu sofreu das mesmas tendinites de Marcio, que caminhava uma média de 30 quilômetros diários. “Muita gente pelo caminho oferece serviços de massagem, pagos, claro”, diz. Além disso, Andreu conta que tinha que dormir em sacos de dormir no chão dos albergues, já que sua viagem tinha um perfil diferente de outras pessoas. “A maioria dos peregrinos dorme bem cedo para acordar às 4 da manhã e caminhar até o meio-dia em direção à próxima aldeia com albergue, já que depois disso o sol está muito forte. A essa hora, entram na fila dos albergues, que são bastante concorridos. Já eu e meus amigos, ficávamos até tarde bebendo e conversando com nossas novas amizades, acordávamos às 11 da manhã e, quando chegávamos no próximo albergue, só tinha lugar no chão mesmo”, comenta.

A comida também foi um problema para Andreu. Ele e alguns amigos tiveram uma gastroenterite séria por conta de algo que comeram pelo caminho e, por isso, não conseguiram chegar à Santiago na data planejada: 25 de Julho, dia de Santiago. Chegar a Santiago nesse dia, depois de percorrer o caminho, é muito especial, ainda mais em 2000, que foi um ano Jubilar. Os anos jubilares acontecem quando 25 de julho cai no domingo – o próximo será em 2021. Depois de dias de cama com febre e diarreia, Andreu e seus amigos percorreram os 15 quilômetros finais e chegaram a Santiago.

Ao chegar à cidade, o grupo fez como todo mundo: foram diretamente à Oficina do Peregrino entregar sua credencial cheia de carimbos para conseguir a Compostela. “Me perguntaram se eu tinha feito o caminho por motivos religiosos e se eu tinha encontrado Deus. Respondi que tinha feito muitos amigos e que tinha encontrado um lado muito solidário das pessoas durante aquela viagem. Por isso, me deram uma Compostela menor do que aquela dada àqueles que fazem o caminho por motivos religiosos. Mas para mim, todas têm o mesmo valor”, conta rindo.

Caminho de Santiago. Foto: Vlad Karavaev / Shutterstock.com
Caminho de Santiago. Foto: Vlad Karavaev / Shutterstock.com

O que ficou de bom do caminho foi o lado social das pessoas que Andreu descobriu. “Todos que encontrei pelo caminho estavam de bom humor e com uma energia contagiante. Além disso, em todas as aldeias por que passei, os moradores ofereciam comida e um ouvido amigo. Queriam saber quem você era e porque estava ali, fazendo você se sentir acolhido. Lembro que tomei café-da-manhã na casa de uma senhora que todos os dias prepara café com torradas para quem passa por ali. A solidariedade das pessoas pode ser gigantesca”.

Andreu diz que hoje, 16 anos depois, faria o caminho com outra motivação. “Hoje com certeza, faria o caminho muito mais focado nele mesmo, e não nas festas, como fiz quando tinha 18 anos. Seria algo muito mais reflexivo. Porém, de uma maneira totalmente inesperada, descobri naquela viagem o senso de coletividade e vi a preocupação das pessoas com gente que eles nem conheciam e que nunca mais veriam na vida. Estava procurando por uma diversão de verão e o que encontrei foi muito mais profundo do que isso”, conclui.

Você já fez o Caminho de Santiago? O que lhe marcou mais nesse desafio? Conte para a gente!

*Foto destaque: mimohe / Shutterstock.com