Tendências dos principais festivais de inovação e criatividade do mundo.
Eu não sou e nem tenho pretensão nenhuma de ser fotógrafo. O máximo que faço é tirar fotos tremidas de discos, pratos de comida e, com sorte, um pôr-do-sol bonito. Tiro tudo pelo celular mesmo, nem câmera fotográfica eu tenho, e vai tudo exclusivamente para as minhas contas no Instagram. Sigo no aplicativo meia dúzia de fotógrafos famosos ou amigos meus que têm a fotografia como profissão e é isso. Dá para perceber que tenho paladar infantil quando o assunto é foto.
Mas minha antena levantou depois que vi a exposição de um coletivo chamado Rolê, em agosto do ano passado, quando o Mirante 9 de Julho foi inaugurado. Armada no esquema de lambe-lambe (impressa em papel de baixa qualidade e com definição meio porca), as ampliações tomavam conta de todos os espaços, nas colunas, paredes e escadas do lugar. As fotos eram todas de lugares abandonados e de seus entornos, de personagens que por ali circulam ou moram, com detalhes que somente olhos com sensibilidade aguçada poderiam captar. Fiquei fascinado. A exposição bateu forte.
O Rolê existe há mais de 10 anos e é formado por 22 fotógrafos, profissionais ou amadores, que registram a cidade de São Paulo por ângulos bem diferentes. Se o lugar escolhido estiver abandonado, melhor ainda, já que invasão de propriedade alheia está dentro do cardápio dos caras. Fora que a ideia de ter um lugar ou objeto visto através de perspectivas e olhos tão diversos é fascinante. O que poderia ser chato e maçante (afinal, quem quer ver 22 fotos de um mesmo pico?) se torna uma experiência incrível, pois cada um dos integrantes do Rolê imprime em suas fotos muito da bagagem de vida e da experiência pessoal. Cada foto é única, ainda que o conteúdo seja o mesmo.
E então um convite caiu no meu colo: você quer participar de uma invasão junto com o Rolê? Digitei “Agora!” e apertei o send.
Dois dias depois recebi um e-mail com as instruções, que continha coisas como “vá com roupas escuras, nada reluzente”, “levem um tripé”, “não dê bobeira com celular na mão” e também o mote da galera, “o penúltimo olha pelo último”. Fiquei sabendo também do local onde íamos nos encontrar e que eu fazia parte de um tal “Grupo B”. Tudo ainda tinha a manta do segredo envolvendo a parada, parecia coisa saída de um “True Detective” brasileiro.
Cheguei pontualmente no local combinado, um pé sujo qualquer na Zona Oeste, e fui logo me enturmando com outros dois convidados que já estavam lá. A cerveja começava a rolar solta, a rapaziada do coletivo também foi chegando, se apresentando e a descontração foi tomando conta de todo mundo. Expliquei pelos menos quatro vezes o que estava fazendo ali, já que era o único não fotógrafo e sem equipamento nenhum. Já passava das 10 da noite quando recebemos as últimas instruções (“cuidado com os cacos de vidro” e “torçam para não chover”) e rumamos para o rolê de verdade. Também ficamos sabendo que éramos o Grupo B pois outra parte da galera, o Grupo A, se reuniu em outro boteco e partiria para a ação de lá.
Os dois grupos se encontram depois de 10 minutos de caminhada e fomos juntos em direção ao destino final, um viaduto onde se pode acessar os trilhos do trem metropolitano de São Paulo, passando por um buraco ou pulando um muro. Durante o trajeto até lá, paramos muitas vezes para tirar fotos, registrando cada canto da quebrada. Muito grafite, muito lixo, caçamba de entulho e pessoas curiosas com um bando de marmanjos cheios de equipamentos circulando por ali. Num beco sem saída e bem escuro onde entramos para registar umas pixações bem legais, ouvimos uma voz jovem e sofrida pedindo uns trocados ou alguma coisa para comer. Chegamos mais perto, mandamos um “salve, boa noite!”, como manda a educação das ruas e puxamos um papo com o rapaz, que estava acompanhado de uma menina de não mais de 18 anos. Ele tinha acabado de sair da cadeia, onde tinha cumprido nove dos 18 anos de sentença que puxou por “assalto” (ninguém acreditou nessa, mas vamos em frente) e estava morando ali no beco, num barracão improvisado. Contou também que “achou essa louca” num bloquinho de carnaval que passou ali por perto e se juntou a ela nessa nova fase de sua vida, agora limpo (“só um fuminho de vez em quando”) e longe do crime. Pedimos para tirar uma foto do casal e de seu barracão, mas ele negou alegando “segurança”. Perfeito, tá certinho. Ganhou uns trocados, umas barras de chocolate e um boa sorte muito sincero dado por todo mundo. Seguimos em frente.
Com o celular na mão, eu pagava de fotógrafo na base do ctrl+C ctrl+V. Onde um deles parava para tirar uma foto, lá ia eu atrás, tentando entender de onde tiram a inspiração, como usam as técnicas e que equipamento utilizam para determinado ângulo. Consciente de que eu falhava miseravelmente, me livrei do pudor e comecei a bater uma foto atrás da outra. Inclusive fui pilhado a usar o celular pelos colegas da invasão, apostando num resultado bastante diferente na qualidade dos clicks. A variedade de resultados é um objetivo que o coletivo procura, talvez um dos seus grandes diferenciais. Portanto, por mais que minhas fotos tivessem foco desgraçado e luz tosca, o que importa é o olhar de quem está por trás da lente.
Enfim chegamos ao lugar da invasão e o alvoroço era nítido. Alguns de nós perambulavam pela lateral do muro, tentando achar um buraco, uma luz ou um ponto de fuga que merecesse um registro. O lugar é muito escuro, os poucos postes de luz amarela só servem para deixar escondidos nas sombras os perigos da selva urbana. Definitivamente, o rolê não é para qualquer um. O acesso aos trilhos propriamente ditos era feito por um vão rente ao chão, com não mais de 30 centímetros de altura. Agacha, se arrasta e se joga, torcendo para que não encontre nenhum bicho vivo ou morto do outro lado. Pronto, estamos todos no meio da via férrea.
O lema do Rolê é seguido à risca, o penúltimo sempre olhando pelo último. Como são trilhos ainda na ativa, com eventuais trens circulando, somos avisados que um comboio está chegando, para darmos passagem. Não é saudável dar bobeira por aqui. Sem trem indo ou vindo, é então que a parte boa começa. Todo mundo com tripé montado, lentes apontando para todos os lados, geral circula livremente pelo lugar. A variedade de equipamentos é ampla, alguns com máquinas que custam mais que um carro, outros com velhas câmeras roubadas da avó. São pelos menos 40 minutos de cliques incessantes, de todas as formas, jeitos e visões possíveis. Em determinado momento, somos avisados que um trem vem avançando na via, mas quem aparece é um limpa-trilho, uma locomotiva de manutenção. Logo que avista aquela gente toda no meio dos trilhos, o operador saca o rádio do bolso e avisa alguém de direito sobre o que está acontecendo. É a senha para todo mundo vazar, ninguém ali vai dar mole e correr o risco de ser enquadrado pelas “autoridades”. Serviço feito, hora de voltar.
Um bar com uma TV gigante rolando um DVD do AC/DC é o ponto escolhido para nos reunirmos depois do rolê. Um exército de tripés e mochilas pesadas é descarregado na porta do bar, garrafas e copos ocupam as mesinhas e começa a troca de câmeras entre os participantes, para termos uma prévia do resultado da sessão de fotos. Mesmo ao ver as fotos pelas telas pequenas, sem tratamento, ainda brutas, esteja longe do ideal, já conseguimos ter uma ideia do que foi captado pelos olhos e pelas lentes. Expressões como “que foda!”, “essa ficou genial” e “onde você tirou essa?” eram ouvidas constantemente; a troca de impressões e feedbacks é muito importante para eles. O coletivo toma as decisões em conjunto, desde o que vai ser postado no perfil do Instagram até as fotos que serão expostas em galerias e, claro, para onde aponta o futuro do Rolê. Madrugada adentro e depois de muita cerveja consumida, é chegada a hora da despedida. Alguns têm filhos para cuidar, outros acordam cedo, pois tem trampo no dia seguinte, outros estão simplesmente acabados de cansaço. Abraços, sorrisos, cada um para o seu canto, falou, valeu. Agradeço a todos eles pela oportunidade, por ter refinado bastante meu gosto e conhecimento sobre fotografia e também pela aula de cidadania e amor por São Paulo, um efeito colateral (desejado) que só quem vive esse tipo de experiência pode ter. Valeu Rolê, foi demais!
Danilo passou mais de 20 anos suando sangue no mercado financeiro. Até que a crise da meia idade bateu forte e ele resolveu largar tudo e partir para o que gosta de fazer: viver bem. Desde então passou a sair mais, a tocar em tudo quanto é canto, a viajar melhor, a exercitar a veia da escrita e da leitura, cuidar do corpo, a montar playlists e, principalmente, amar fazer tudo isso. Não quer nem lembrar da fase em que esteve debruçado em cima de uma HP12C. Saravá, Danilo!
Ver todos os postsPara quem é de fora do rolê, participar é impossível?
Olá Sammia, tudo bom?
É possível sim, através da Madalena CEI (http://madalenacei.com.br/), que mantém juntamente com o coletivo uma série de bate-papos e workshops.
Acredito que o próximo evento seja dia 31/05, porém as vagas estão todas preenchidas. Fique atenta ao site do Madalena para saber quais serão as próximas datas!
Espero ter ajudado!
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Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.