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Uma sociedade que não é regida por dinheiro, por religião ou por política. Não, não é letra de música do Legião Urbana: Auroville é uma cidade com esse conceito. Ao menos foi o que eu mesma havia lido por aí.
A cidade realmente partiu a partir de um sonho:
“Deveria existir um lugar no mundo que nenhuma nação pudesse reivindicar para si, onde todos os seres humanos de boa intenção pudessem viver livres como cidadãos do mundo, e obedecerem a uma autoridade única: a suprema verdade. Um lugar que os desejos do espírito e a preocupação com a evolução pessoal precederiam à satisfação de desejos e paixões, ou à busca de prazer e diversão material… dinheiro não seria o rei soberano: o valor individual deveria ter importância muito maior que a riqueza material ou status social. …Um lugar que as relações humanas seriam substituídas por emulações do fazer bem, de colaboração e real irmandade.”
Auroville foi inaugurada em 1968, mas se a cidade é relativamente antiga, os preceitos da sua criação não poderiam ser mais atuais: troca do emprego por trabalho com propósito, da religião por espiritualidade. A troca do consumo desenfreado pelo auto-sustentável, a hierarquia, por colaboração. Não parecem temas saídos da sua timeline do Facebook na semana passada?
Esse foi o sonho de Mirra Alfassa, conhecida como “The Mother”. E ela o colocou em prática. Mais de 123 nações compraram a ideia e fundaram Auroville. Oficialmente pertencente ao sul da Índia, desde 1968 a cidade tem incentivo do governo do país e da UNESCO para tomar decisões quase autonomamente.
Desde que soube da cidade, minha curiosidade estava mais que atiçada para dar um pulo lá. Comigo, apenas uma pergunta na cabeça que não queria calar: e aí, funciona? Pra mim, visitar Auroville era mais que turismo: era uma oportunidade de uma espiadela em um futuro possível e desejável.
Foi então que empacotei meu kit-hippie: saia indiana, lenços com cores de todos os chakras, shampoo biodegradável, bolsa tie dye rumo a Chennai, sul da Índia. Do aeroporto, 5 dólares compraram 4 horas de pura emoção no ônibus local do aeroporto para Pondicherry: vacas, motos, tuk-tuks e carros desafiavam na estrada todas as leis da física. De Pondicherry, mais um tuk-tuk superfaturado a Auroville (Dica: para a versão “sem emoção”, é só chamar um dos táxis oficiais da cidade para lhe buscar no aeroporto de Chennai).
Finalmente cheguei à “Cidade do Despertar”. O silêncio, a calma e a tranquilidade da cidade eram exatamente o que eu precisava para aquietar a dor de cabeça adquirida com as histéricas buzinas e mugidos do caminho.
Uma moça de moto passa com pão. Outros tomam chá na cafeteria local. A vida em Auroville segue como todos os dias. No centro, uma gigante bola dourada com jardins idílicos ao redor marca o centro geográfico e espiritual da cidade: o Matrimandir. No caminho até o mirante, placas relembram as doze qualidades humanas que “A Mãe” deixou como doutrina para cidade: sinceridade, humildade, gratidão, perseverança, aspiração, receptividade, progresso, coragem, deus interior, generosidade, equidade, paz. Enquanto caminhava até o cartão postal da cidade, eu refletia sobre o quanto exercia cada uma delas – não à toa, o caminho é um convite à introspecção.
A cidade é pequena pero no mucho, portanto é recomendado um meio de transporte: bike para os mais saudáveis, mas motoca é o principal meio de locomoção. Por 10 dólares aluguei uma vespa para chamar de minha pela semana inteira.
A cidade é dividida por comunidades, e muitas delas oferecem hospedagem aos visitantes, assim como guest houses ou até estadias com famílias: o desorganizado site de hospedagens dá algumas dicas de quem hospeda. Entretanto, é preciso mandar email individualmente para cada uma delas para checar a disponibilidade. Cheguei e fui direto ao Guest Services, uma espécie de central de hospedagens e reservas. O único detalhe é que a central lá também não é nada centralizada: eles não tem a menor ideia de onde tem lugar. Folheei algumas fotos, fiz duas perguntas respondidas com uma certa dose de má vontade: aos poucos você percebe que eles não dão muita bola para turistas mesmo, e isso é parte do charme.
Fiquei na comunidade Transformation, em uma casa da comunidade com dois quartos lindinhos: por 12 dólares por dia, uma suíte gigante, com design rústico e três camas.
A arquitetura das casas de Auroville é linda: formatos geométricos que se confundem e mesclam com a natureza, além de experimentos de construções que combinam com o estilo de vida dos moradores. Essa casa em Transformation não poderia ser diferente: com casas na árvore para crianças, piscina, redes, já que também abriga um jardim de infância. Hoje, honestamente, teria pesquisado antes e ficado em um lugar com mais interação com os moradores: o repertório de bate papo das crianças de seis anos é, afinal, deveras limitado.
Mas #ficadica: a Joy, por exemplo, é uma comunidade maior, com quartos privados ou compartilhados, e que faz jantares temáticos, assim como acroyoga, dança, e que vira um point para o pessoal mais jovem. A Arka é um centro focado em saúde e bem estar, com várias terapias, especialmente para mais velhos. Já a Verité, além da guest house, é um centro de terapias e yoga integral, ideal para quem está em um ritmo introspectivo. Teria ficado em qualquer uma delas.
Comentei que a cidade não foi exatamente feita para entreter turistas, né? Mas aos poucos você percebe que há muito o que fazer. O segredo é descobrir logo o jornalzinho semanal da cidade, o Auroville News e Notes: de hipnoterapia a acroyoga, de filmes de ação a asanas, de hip hop a tambores africanos, de pintura de rosto a jardinagem orgânica. É lá que se concentra a agenda da cidade.
Na minha semana lá, fui aprender jardinagem orgânica em larga escala com a galera do Buddah Garden. Na aula de kundalini yoga na Verité, descobri que respiro “tudo errado”. Aprendi a fazer pizza vegana na Joy, vi filme ao ar livre , participei de meditação e leituras no Savitri Bhavan, e um sarau de poesias na lua cheia.
Teve até festa! Quando falo festa, troque os estrobos por velas, o globo espelhado por flores, e a coreografia no queijinho por danças circulares. A festa é assim:
Se você quiser se ocupar das 6 da manhã às 10 da noite há o que fazer. Depois das 10, a cidade é mais quieta que cemitério indígena.
O ponto alto da visita a Auroville é meditar no Matrimandir. A tarefa não é das mais fáceis, mas é uma experiência única. A grande estrutura dourada parece emergir da Terra, simbolizando o nascimento de uma nova consciência. Ele está há 45 anos em construção, e apenas faltam finalizar seus jardins. Para visitá-lo pela primeira vez, você é colocado em contato com a burocracia auroviliana: o agendamento é pessoal, das 9 às 10 ou das 14 às 15 durante a semana, menos às terças, para o horário mais próximo. Em geral se consegue para dois ou três dias para frente. Então, se você for fazer uma viagem de um dia, provavelmente não conseguirá visitá-lo.
7:30 da manhã estava eu na fila com meu papel de agendamento, entre vários indianos e alguns estrangeiros. Um legítimo aurovillian apresenta a história do Matrimandir e o propósito de Auroville, você assiste a um vídeo, e pronto, está preparado para a visita. Então é encaminhado através dos seus jardins até as 12 pétalas do Matrimandir: o momento é apenas de contemplação e silêncio.
O vídeo acima não demonstra nem um décimo da beleza do local, mas dá para dar uma canjinha. A água escorre por baixo simbolizando as energias que se renovam.
Na sua vez, você veste meias brancas (sim, limpas…) e é encaminhado através de um espiral feito completamente de tapetes fofos brancos. Sabe aquela cena de filme que você está no corredor rumo ao paraíso? É isso que parece.
Finalmente, você chega à câmara central do Matrimandir: um grande circulo branco, com almofadas brancas, e um grande globo de cristal no centro, iluminado por um feixe de de luz natural de cima. Você pode meditar de 15 a 30 minutos. Nunca pude escutar tanto silêncio tendo mais de 70 pessoas ao meu redor.
Como boa cidade hipponga que se preze, a maioria das refeições é vegetariana, com bastante opção vegana. Para mim, que não como carne, foi o paraíso gastronômico: a plantação orgânica, a variedade dos cardápios e os temperos indianos. Álcool é meio que proibido, e cigarro é relativamente mal visto (não é aceito fumar em nenhuma comunidade, apenas na rua).
Os cafés são vários e um mais fofo que o outro – o conceito é focado no soil & soul – o solo de onde vem o alimento e na alma, mais do que oferta e demanda. Portanto, o atendimento é lento, o alimento é preparado com cuidado, bem comfort food.
Entre as dezenas de opções, o Solar Kitchen é o bandejão da comunidade, que estimula que você pegue somente o que vá comer e evite o desperdício.
O Farm-fresh é uma mistura de padaria, supermercado e café, com quiches e chás deliciosos, com o que foi possível colher na semana. O Well Cafe, no meio da floresta, foi um dos meus favoritos – quem diria que um mero hambúrguer de soja e lentilha pudessem ter sabor de manjar dos deuses? O Naturellement é um jardim fofíssimo, famoso pelas massas.
Bom, e dinheiro para fazer essas coisas? Sim, há troca monetária na maioria das atividades, com exceção do Matrimandir. Vale lembrar, no entanto, que tudo é muito barato. Ao chegar você precisa ir ao “banco” da cidade para pegar um Aurocard – uma espécie de cartão pré-pago que vale para muita coisa. Para moradores da cidade e voluntários há preços especiais e, segundo me falaram, caso você não possa pagar, muitas vezes há formas de conversar para trocar por outros tipos de serviços.
É possível perceber que as pessoas vivem com muito menos, e que a austeridade é meio que vista com bons olhos. Se as pessoas são aceitas como aurovillians e provam que não tem como pagar, eles recebem da comunidade um valor de “manutenção”, que é suficiente para as suas necessidades básicas. Em Auroville, o trabalho não deve ser uma forma de sustentar a sua vida, mas sim de prestar um serviço à comunidade e exercer a divindade que existe dentro de si.
Mirra Alfassa, conhecida carinhosamente como “The Mother”, foi quem desenvolveu o conceito e é até hoje reconhecida como líder espiritual da comunidade. A fundação teve como maiores apoiadores o Governo da Índia e a UNESCO , que encorajaram o projeto como importante para o futuro da humanidade.
Em Auroville, tudo é meio experimental. Afinal, é a primeira sociedade cujo objetivo não é o progresso, ou enriquecimento, mas sim a transformação da consciência através da vida auto-sustentável, da dedicação e do foco no desenvolvimento cultural, ambiental, social e espiritual de todos que lá vivem.
A responsabilidade para que a cidade permaneça na mesma visão é da Auroville Foundation, que cuida do dia-a-dia da cidade por meio de aurovilianos que tentam dividir a tarefa (e o poder) em uma sociedade não-hierárquica. A maior parte das decisões devem ser tomadas pelo Comitê de trabalho e o Conselho de Auroville, eleitos bianualmente por voluntários. Decisões muito importantes envolvem uma Assembléia de Residentes, onde todos têm o mesmo poder de voto. Tudo que existe em Auroville é propriedade da Auroville Foundation, que dá o direito de usufruto aos cidadãos, mediante pagamento de aluguel, na maior parte das vezes.
A cidade tem a pretensão de ser ser uma “cidade do futuro”, uma nova sociedade, onde as pessoas desejam sinceramente um futuro mais harmonioso. Ao redor do Matrimandir, a cidade é dividida em áreas: Industrial, Cultural, Residencial e Internacional. Ao redor de Auroville há um cinturão verde de áreas florestadas, fazendas e santuários.
Hoje há em torno de 2.500 aurovillians, ou moradores da cidade, além de visitantes e voluntários. Eles vem de 49 nações diferentes, e representam a humanidade como um todo. A maioria vive em comunidades e se espalha entre as várias áreas da cidade. Para ser um aurovillian, é necessário passar por um processo (relativamente fácil) de seleção, fazer um teste como voluntário alguns meses, antes de ser aceito como um novato (newcomer).
Se fosse ser dicotômica, na minha curta experiência, a resposta seria não. É uma cidade que faz trocas com dinheiro, toma decisões com base em política, e sim, a maior parte das pessoas segue de alguma forma uma religião. Mas o assunto é muito mais complexo que isso.
Os desafios são imensos. Pude experienciar alguns exemplos em meu pouco tempo por lá. A comunidade não consegue construir ou gerenciar residências para todos os newcomers: como decidir quem tem mais direito? Aqueles que estão lá há mais tempo, ou prestaram mais serviço, deveriam ter privilégios? Não é preciso muita conversa para observar intrigas ou ressentimentos entre antigos e novos, entre comunidades, entre os negócios.
A criminalidade é outra: Auroville está muito próximo a várias comunidades na Índia com cultura e situação econômica bastante diferente. Como inserir a comunidade nesse contexto? Deveriam fechar os portões da cidade, sendo que Auroville é exatamente sobre inclusão, em vez de exclusão? E o que fazer com casos de roubos e inclusive de violência contra mulheres, com recursos limitados?
Ainda, a cidade se auto-proclama sem religião. Para o mais desavisado, como eu, parece entretanto ter uma crença própria e bem religiosa. Será? Recorrendo ao Aurélio, religião é um sistema de doutrinas, crenças e práticas ritualísticas próprias de um grupo social. Nesse sentido, Auroville é a casa de um culto próprio. Em toda parede, em toda estante, estão a foto e os ensinamentos da fundadora.
Mas se a pergunta for outra… Auroville está mais próximo de uma sociedade ideal?
Sem dúvida diria que sim. Se em tudo que há pessoas e recursos limitados há disputa de poder, ainda assim, essa disputa lá é feita de maneira mais colaborativa e democrática. Só isso, é um grande passo com relação ao que temos hoje. Se a troca de recursos e serviços é, sim, feita através de valores monetários, é notório que o dinheiro não rege as decisões, e sim o bem estar. Também, é um grande passo com relação ao que temos hoje. Se nossa alma se acalma com diretrizes de comportamento, e com rituais que nos lembram deles, Auroville pode até ter uma “religião” própria. Mas diferente das demais, ela não exclui, e tem como objetivo incluir a todos.
Com quase meio século de existência, Auroville não é um sonho que deu certo. É um processo, certamente em uma direção altamente desejável para uma sociedade inclusiva, colaborativa, e realizada.
Seu exacerbado entusiasmo pela cultura, fauna e flora dos mais diversos locais, renderam no currículo, além de experiências incríveis, MUITAS dicas úteis adquiridas arduamente em visitas a embaixadas, hospitais, delegacias e atendimento em companhias aéreas. Nas horas vagas, estuda e atua com pesquisa de tendências e inovação para instituições e marcas.
Ver todos os postsEstive lá com meu marido, que é indiano de Goa. Mas ficamos só 2 dias e, para ser sincera, não gostei muito. Veem-se pouca gente nas ruas, tudo é longe, tem até um bondinho para quem não quer alugar uma moto ou bike. Mas não vi muita interação entre as pessoas. Meio esquisito.
Adorei, muito legal a matéria, foi bem explicativa em relação as dúvidas que eu tinha.
que ótimo que gostou :)
Vanessa, excelente a sua matéria, tb quero conhecer Auroville.
Vc não se referiu a contato com brasileiros residentes; por acaso tem email de algum deles?
Agradeço sua atenção
Oi Sula, tudo bem?
Eu não tenho email de ninguém, mas as casas que hospedam tem email no site que passei, e eles são super solícitos em ajudar.
Descobri recentemente a existência de Auroville, e fiquei encantada com a filosofia deste lugar. Fui pesquisar e li muitas matérias que discorrem apenas sobre as qualidades do local, com teor, eu diria, quase turístico. Já li alguns depoimentos de pessoas que visitaram o lugar, mas com impressões um tanto superficiais. Este depoimento está bem interessante, com vária observações sobre a forma de organização da cidade. Bem esclarecedor.
Vivemos em um mundo de opções pasteurizadas, de dualidades. O preto e o branco, o bom e o mau. Não importa se é no avião, ou na Times Square, ou o bar que você vai todo sábado. Queremos ir além. Procuramos tudo o que está no meio. Todos os cinzas. O que você conhece e eu não, e vice-versa. Entre o seu mundo e o meu.