Flanar, na definição de dicionário, é “andar ociosamente, sem rumo nem sentido certo; flanear, flainar, perambular.” São Paulo é uma cidade fantástica pra flanar. Ainda mais em tempos como os de hoje, em que tanto da cidade está sendo redescoberto. A cidade em constante transformação oferece informação, diversão, experiências para quem quiser. Basta saber o que olhar. Pegue o Bixiga como exemplo. O bairro é um dos mais representativos da comunidade italiana na cidade, mas tem uma história que precede a chegada dos imigrantes europeus que segue viva ainda hoje.
Começa assim…
O Bixiga oficial completou 140 anos em outubro de 2018. Mas, como quase tudo quando se fala da ocupação do solo em São Paulo, é difícil definir quando exatamente o Bixiga começa. A data comemorativa oficial é 01 de outubro quando, em 1878, foi inaugurado o loteamento do bairro. Na ocasião, que contou com a presença do Imperador Dom Pedro II, houve a colocação da pedra fundamental onde hoje está o cruzamento das ruas Major Diogo e Santo Antônio, para marcar a construção de um hospital (que nunca aconteceu).

Mas os primeiros registros de ocupação da área são do século 16 como Sítio do Capão. E foi só na década de 1820 que o sítio passou para um homem conhecido como Antônio Bexiga, daí o nome. Segundo reportagem do Nexo Jornal, “antes de ser ocupada por imigrantes, a Bela Vista, onde se localiza o Bixiga, era utilizada como esconderijo de negros em fuga.” Grupos de pesquisa e estudo como o Instituto Bixiga de Pesquisa e Formação Popular e o Cidades Educadoras apontam para a presença de quilombos, beneficiados pela mata fechada da região, muito antes da divisão da área em lotes. Com o passar do tempo “a urbanização deu lugar a lotes estreitos e profundos, ocupados por mais de uma família, onde os negros se instalavam nos fundos e os imigrantes brancos nas frentes das residências,” aponta o Nexo.
Não é por acaso, então, que a mais famosa rua do bairro se chame 13 de Maio, data da assinatura da Lei Áurea. E nem é coincidência que o grupo afro Ilú Obá de Mim promova a lavagem da escadaria todos os anos nessa data. A presença negra no bairro sobrevive ao apagamento histórico com rodas de samba nas ruas nos finais de semana, a presença de terreiros de candomblé e umbanda e a Vai-Vai (veja abaixo).

Onde, exatamente?
A melhor forma de ver o Bixiga é andando. O bairro não fica colado a nenhuma estação de metrô, mas dá pra chegar a partir das estações São Joaquim ou Brigadeiro. Também é bem fácil chegar de ônibus pelos corredores da Brigadeiro Luis Antônio e 9 de Julho. Ou pegar um Uber.
As fronteiras do Bixiga são difíceis de definir e mudam de acordo com o entendimento do interlocutor. É uma parte do centro da cidade, que pode ir de trás da Praça da Sé até a Avenida Paulista, é meio que a mesma coisa que a Bela Vista, ou é apenas a região ao redor da Praça Dom Orione e Rua 13 de Maio? Uma idéia do Bixiga: vai dos Arcos Jandaia e Rua Adoniran Barbosa até o MASP e da Avenida 9 de Julho até a Rua Vergueiro. Não tô inventando – essa é a definição do bairro de acordo com o mapa da Sampapé, organização que busca melhorar a experiência de andar nas cidades. A Sampapé fez seu primeiro “Passeio a Pé”, justamente no Bixiga, em 2012. Desde então eles promovem discussões, eventos, caminhadas e metodologias de engajamento comunitário. Procure por eles no site e no Facebook, Instagram e Medium. Também procure (online ou nas ruas do bairro) o belo mapa do bairro que a ONG criou.

O que ver e fazer no Bixiga
Comece pelo Museu Memória do Bixiga, na Rua dos Ingleses. Tem cerca de oito mil fotografias de época e quase dois mil itens de acervo, incluindo objetos do compositor Adoniran Barbosa. Inaugurado em 1981, o MUMBI é o principal espaço de preservação da memória do Bixiga e ocupa um casarão que ficou vazio por mais de três décadas e do qual se sabe pouco. Além de visitas guiadas e a promoção de estudos e pesquisas. A história dos teatros do Bixiga, uniformes de soldados da Revolução Constitucionalista de 1932, a herança da população negra, imagens e histórias dos casarões, muitos hoje abandonados: esse é o lugar para saber de tudo um pouco. O museu também promove almoços com o tradicional nhoque da sorte italiano todo dia 29!

O topo da Escadaria do Bixiga, no final da Rua dos Ingleses, do Bixiga é um excelente lugar para começar um passeio ou marcar ponto de encontro. Inaugurado em 1929 para servir de ligação entre a parte alta e rica (Morro dos Ingleses, onde moravam os funcionários europeus da São Paulo Railway) e a parte baixa e pobre (dos cortiços da Rua 13 de Maio) a escadaria ficou deteriorada por décadas e hoje, restaurada, é local de eventos como shows de jazz, brechós ao ar-livre e piqueniques comunitários.
Vire à direita na direção da Praça Don Orione e entre na galeria do número 870. No segundo andar fica o Alabama Hotel, um brechó com janelona linda que dá vista pra praça. Nos fins de semana, a turma do Alabama costuma promover eventos com música e exibições. Fique de olho no site.

O Mundo Pensante, também na 13 de Maio, descendo na direção do bairro, é uma balada mas também é espaço multicultural onde são exibidos filmes, peças de teatro e mostras de arte, além de workshops, cursos livres, debates e oficinas de temas diversos. Ocupa o mesmo casarão que abrigou o Clube Glória e é um dos espaços que tem ajudado a mudar a cara do Bixiga antigo. Há eventos de dia e de noite, consulte a programação.
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Descendo a Treze de Maio na direção da Achiropita você vai passar na frente do Cannoli do Bixiga, uma portinha com balcão que só abre de quinta a domingo, sempre à tarde. O posto de melhor cannoli da área é disputado, mas esse tem sido preferido de quem frequenta a área: é fresco, leve e sem doçura exagerada. Minha escolha é o tradicional, com creme de ricota e frutas cristalizadas, mas há opções como nutella e doce de leite argentino. Pode servir de sobremesa para quem encara antes uma (deliciosa) fatia de pizza enrolada em cone. Pra comer na rua.

Se você é paulistano, é provável que já tenha comido o pão italiano da tradicionalíssima Basilicata, responsável pela entrega do pão usado no couvert em muitos restaurantes da cidade. A padaria foi renovada nos últimos anos e hoje funciona em esquema catraca, vendendo todo tipo de produtos. Perdeu em aconchego, mas os doces e pães continuam ótimos.

Deu fome de almoço? A Rua 13 de Maio tem mais cantinas do que deveria ser permitido por lei, e a verdade é que a maioria delas são bem mais ou menos. Uma das boas exceções é a Roperto, casa clássica de massas que não raro tem filas enormes na porta. O carro chefe é o fusilli com calabresa.

Para tomar um café especial, dê uma parada na casa Casa Jardim Secreto que ocupa um casarão histórico da Rua Conselheiro Carrão — leia mais nessa reportagem do SP24hrs. A feira de mesmo nome, que deu origem à casa, acontece uma vez a cada dois meses na Praça Dom Orione. Siga no Facebook para saber as datas.

Outras coisas
Outra opção para almoçar é o Sacolão do Bixiga, que fica debaixo do viaduto de frente para o Teatro Oficina. Basta descer a Conselheiro Carrão, virar na Major Diogo e seguir por baixo do viaduto, passando pela Arena Bela Vista, o projeto social que usa a área debaixo do Viaduto Jaceguai como espaço de esportes e convivência. O Sacolão é frequentado principalmente por quem mora na área, que compra no hortifruti, boxes de açougue, pastel e afins. Vale se programar para almoçar em qualquer dia da semana no concorrido e elogiado Box 62, da cozinheira Mara Rasmussen, que serve receitas com jeito de cozinha de mãe, como arroz a grega, cuscuz e pê-éfes. As coxinhas são sensacionais, assim como as quiches. Chegue cedo para pegar lugar numa das mesas de madeira, peça uma jarrinha de mate gelado e aproveite.
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Durante o Carnaval, o Bixiga é tomado por blocos diversos, novos e antigos. A tradição sambista do bairro tem muito a ver com a quadra da Vai-Vai, a mais premiada escola de samba da cidade. Os ensaios da Vai-Vai fazendo o chão do bairro tremer, literalmente, e são dor e delícia para os moradores. Como juntam milhares de pessoas e só crescem a cada ano, há quem queira tirar dali a sede. Mas é importante lembrar que a Vai-Vai é parte da vida e da história do Bixiga e está ali desde 1930. Os ensaios de 2019 devem começar em breve, fique de olho no site da escola para saber. Aproveite e conheça abaixo o tema de 2019: o quilombo do futuro.
Nos limites do bairro, mas do outro lado da Brigadeiro Luiz Antônio, está um dos tesouros de São Paulo: a Vila Itororó, na Rua Martiniano de Carvalho. Símbolo da população imigrante e operária, a construção na época ficou conhecida como Casa Surrealista e com o passar das décadas se tornou mais um dos cortiços deteriorados do Bixiga. Está hoje em reformas para se tornar um pólo cultural com apoio da Prefeitura e tem horários de visitação abertos ao público. Aproveite que está na área e passe na Basílica do Carmo, também na Martiniano de Cavalho, ali perto.
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Se você andou durante o dia, jantou e quer terminar com um drink, acabe a noite no Espaço Zebra. O belo estúdio de arte do casal Renato Larini e Neli Pereira tem uma programação sempre interessante que pode envolver drinks criados com ingredientes brasileiros, apresentações musicais e mostras de novos artistas visuais. Consulte antes de ir.
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*Foto de destaque: Gaia Passarelli