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Contos de viagem: Sobre Fronteiras

Quem escreveu

Mentor Neto

Data

16 de December, 2014

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“Os senhores me desculpem, mas devido ao adiantado das horas eu me sinto anterior às fronteiras.”
Carlos Drummond de Andrade

Respiro fundo quando as rodas tocam a pista finalmente.
Não tenho medo de avião. Tenho medo de pouso.
Tudo é velho, tudo nesse avião é sucateado. Até o lanchinho.
O monitor diz alguma coisa em farsi. Não faço ideia do que quer dizer. Pode ser o nome de uma cidade ou um aviso de incêndio a bordo.
Péssima primeira impressão.
No headphone, deixo tocar ‘Passarim’, do Tom.
Qualquer aeroporto melhora muito com Tom Jobim.
As luzes de apertar o cinto se apagam ainda fora do finger.
Descubro que não há finger.
Um monte de velhos suados com ternos surrados correm para agarrar suas malas nos compartimentos acima do assento.
Continuo na janela, atrasando o inevitável. Parece com os dias brancos de São Paulo.
Sentado na minha poltrona, ainda estou na fronteira entre São Paulo e Teerã, mesmo longe do Brasil.
Parti ontem ou antes de ontem, depende do fuso horário. Pousei em Dubai. Decolei. Pousei em Bagdá. Decolei. Pousei em Teerã.
O Irã é a Cuba do Oriente Médio. Dois embargos, um Americano e outro Europeu.
Teerã é uma espécie de Largo da Batata encrustado no meio do que deveria ser o real celeiro do mundo.
– This IS Persia – diz um sujeito atrás de mim, enquanto descemos a escada e caminhamos pela pista.
– Was. – respondo sem olhar para trás.
‘Só danço samba’, do Tom, no loop do headphone.
Alguém tentou me ajudar quando decidi vir para cá:
”O Irã tem as melhores estações de esqui do Oriente Médio”.
Mas quem vai para o Oriente Médio esquiar na neve, interrogação.
Passo facilmente pela aduana.
O cartão de visita do Ministro do Interior abre todas as portas necessárias para entrar e, espero, sair.
Vou ficar aqui por seis dias [acabei ficando 20, graças às agendas dos meus anfitriões].
A ideia é apresentar uma campanha para estimular o turismo.
O carro negro do governo não tem marca reconhecível. Parece uma Mercedes, mas como tudo aqui deve ser falso.
– Dividimos? – O sujeito da escada do avião é simpático. E brasileiro.
– Claro. Neto, prazer.
– Prazer, Biriba.
Colo a cabeça no vidro do carro, não quero conversar com ninguém.
Mau humor de chegar pela manhã muito cedo.
Biriba não para de falar.
Aumento o Tom. ‘Já dancei o twist até demais’.
O carro dispara pela Via Azadegan que lembra a Marginal.
Passamos por uma enorme construção.
O motorista explica em inglês que aquele é o túmulo de um Aiatolá.
A arquitetura do subúrbio parece com o pior de Buenos Aires.
Vejo as mulheres pela janela. Os lenços escorregam desafiadoramente para trás.
Não se usa burka em Teerã.
Apenas algumas mulheres usam mantos negros, para sinalizar que apoiam os Aiatolás.
Vinte minutos depois, entramos na Via Chamran e dali para o estacionamento do Hotel Esteghal. Dizem que era o antigo Hilton antes da revolução de 1978.
Não deve ter sido reformado desde então.
O carpete do lobby é encardido e desbotado como os funcionários.
No check-in, meu passaporte é retido.
Só vão devolver no dia de partir.
O pagamento terá que ser feito em dinheiro.
Não existe cartão de crédito ou débito no Irã.
Da grande janela do saguão principal dá para ver a piscina.
Vazia há 30 anos.
Quem poderia usá-la se os homens ganharam o direito de arregaçar a manga há apenas dois anos?
Mulheres? Você só pode estar brincando.
Fronteiras são limites. Limites são censuras.

“Borderline, feels like I’m going to lose my mind”
Madonna

Meu parceiro de viagem é especialista em etanol.
É só isso que sei do Biriba.
Durante o tempo que passei em Teerã, e que não estava em reunião com o Governo, estava com Biriba.
Biriba é o melhor tipo de caipira. Aquele com atitude, que não se intimida porque estamos num país muçulmano nem com o risco de ter seu pinto arrancado em praça pública se fizer graça com uma Iraniana.
Biriba é testosterona em estado bruto.
Não há fronteira que pare Biriba.
– Vamos ao Shopping, Neto?
– E tem isso aqui? – pergunto depois de seis dias no Hotel.
Sem álcool.
Tem Shopping em Teerã. E vendem as populares marcas Chamel, Luis Vitan, Hermos e outros clones pelo preço dos originais.
Se você não tem dinheiro para o luxo das marcas caras, não tem problema. Ao lado da Chamel, tem a Chamol, que vende clones da Chamel, muito mais baratas.
Não estou exagerando. O Shopping é uma sucessão de marcas pirateadas do ocidente.
Tudo é falso em Teerã.
Até a falta de liberdade.
Duas mulheres passam por nós, pouco mais de 25 anos.
Biriba sorri, elas retribuem. Dez metros depois, viram-se para nos ver.
– É nóis, Neto. Fica aqui parceiro.
Biriba gosta de me chamar de parceiro.
Cinco minutos depois volta com nossa agenda para uma hora mais tarde: um encontro com as duas num café local.
Só uma fala inglês. A outra, por quem Biriba está apaixonado, só fala farsi.
Biriba não fala inglês além de “This is Persia”.
Sou escalado como intérprete.
Caminhamos pelo Shopping enquanto tento demover Biriba dessa ideia absurda.
– Mas e se os Iranianos não gostarem da gente falando com elas?
– Não gostar causadequê Neto?
– Sei lá. Ciúmes.
– Oxi.

Fade out. Fade in.

Estamos sentados em um bar com seis mesas para quatro pessoas. Cada mesa tem um narguilé. Tomamos chá e conversamos com as meninas.
Biriba quer se arranjar.
Eu não. Tenho medo.
– Fala pra prima dela perguntar se ela quer me dar um beijo, Neto.
Não preciso falar nada. A prima é esperta suficiente para entender tudo que acontece na mesa. Ela ri para mim e estabelece um diálogo paralelo deixando Biriba aos gestos com sua eleita.
Nisay, me explica com calma tudo que quero saber.
– Ela está aqui para seu amigo.
– PARA meu amigo?
– Sim. PARA fazer sexo com ele. Essa é a única esperança que ela tem de fazer sexo antes do casamento. Mulheres no Irã casam virgens, ou fazem sexo com estrangeiros.
Biriba e Nasha riem um para o outro e fazem gestos semi-obscenos. Biriba não é exatamente sutil.
– E você? – pergunto.
– Eu não sou mais virgem. Perdi a virgindade com um namorado e ele terá que casar comigo. Senão meu pai me expulsará de casa.
As duas conversam entre si.
– Minha prima está preocupada porque eu disse que ela ainda é virgem.
Traduzo para o Biriba.
– Oxi Neto! Diz pra ela que eu adoro virgem! – a frase vem acompanhada de um gesto escandaloso, seguido de um coramão para sua amada.
– Mas ela também disse que fora isso – continua a prima – ela já fez de tudo.
Fico olhando para a jovem em silêncio por alguns segundos, numa mistura de surpreso e constrangido com o esforço com que ela vende o produto da amiga.
Biriba me tira do transe.
– Ô Neto, pergunta pra elas onde pode “rolar”.
Pergunto.
– Se você morasse aqui, num prédio. Existem edifícios onde os homens compram pequenos apartamentos e podem levar suas amantes. Lá não usamos lenços. Lá somos livres.
– No caso do nosso casal de pombinhos?
Ela ri.
– Ele vai ter que ir à casa dela. Quando os pais não estiverem. Nem os irmãos.
– Pergunta quando Neto! – Biriba está perdendo a paciência.
– Quarta-feira. Duas da tarde.

Fui embora na terça e nunca mais vi o Biriba.
Mas gosto de pensar que naquela quarta-feira, as duas da tarde, ele estava lá na casa de sua namorada iraniana. Gosto de pensar que ele não se intimidou por nenhum risco, nenhum limite.

Afinal, fronteiras são assim.

Homens vão lá e as erguem. Imaginárias. Culturais. Étnicas. Religiosas.
Aí esses mesmos homens vão lá e, como os passarinhos do Tom Jobim, ignoram e voam por cima delas.

 

 

(Publicado na Revista Nacional Nº5 26.11.14)

 

Foto: Shutterstock   Copyright: aastock

Quem escreveu

Mentor Neto

Data

16 de December, 2014

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Mentor Neto

Sou o Neto, diretor de criação da Bullet e o @Neto no twitter. Não é o Neto que comenta na Bandeirantes, nem o pagodeiro que bate em mulher. Escreve no http://naocontepramamae.tumbrl.com

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Comentários

  • eee, finalmente uma história sua do Irã aqui no blog. Btw, essa frase me fez rir um bocado por fazer parte da minha realidade:

    “”O Irã tem as melhores estações de esqui do Oriente Médio”.Mas quem vai para o Oriente Médio esquiar na neve, interrogação.”

    sempre que falo pro Ola pra gente ir pro Irã, ele responde “vamos no inverno, lá é ótimo para esquiar”…

    - Lalai Persson

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